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04 fevereiro 2015

Institutas 29

“... Agostinho diz, em certa passagem: ‘Calem aqui os méritos humanos, que por Adão pereceram, e reine a graça de Deus por Jesus Cristo’ [Agostinho, De praedest. Sanct. 15, 31 MSL 44, 983]. E também: ‘Os santos não atribuem nada a seus méritos, mas atribuem tudo, ó Deus, à tua misericórdia!’ [Agostinho, In Ps. 139, 18 MSL 37, 1814]. E também: ‘Quando o homem vê que todo o bem que tem não o tem de si mesmo, mas de seu Deus, vê que tudo o que é louvado não vem de seus méritos, mas da misericórdia de Deus’ [Agostinho, In Ps. 84, 9 MSL 37, 1073]. Vemos que, depois de tirar do homem a faculdade de executar boas obras, rebaixa também a dignidade de seus méritos. Do mesmo modo Crisóstomo: ‘Todas as nossas obras, que seguem a gratuita vocação de Deus, são recompensa e dívida que lhe pagamos; mas os dons de Deus são graça, beneficência e grande liberalidade’ [Chrysostomus, In. Gen. Hom. 34, 6 opp IV 404 A]...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XV, parágrafo 2)

... Portanto, só está bem fundamentado em Cristo quem sólida e firmemente tem nele sua justiça, uma vez que o apóstolo não diz que Cristo foi enviado para nos ajudar a alcançar justiça, mas para ser nossa justiça, a saber, segundo nos escolheu antes da fundação do mundo, não segundo nossos méritos, mas segundo o mero afeto de sua vontade (Ef. 1:4-5)... Mas isto não é tudo, pois, ao sermos admitidos a tal participação, ainda que em nós mesmos ainda sejamos insanos, ele é para nós sabedoria diante de Deus; ainda que sejamos pecadores, ele é justiça para nós; ainda que sejamos impuros, ele é pureza para nós; ainda que sejamos débeis e estejamos sem forças e inermes e não possamos resistir a Satanás, a potência que foi dada a Cristo no céu e na terra é nossa e, com ela, ele submete Satanás e faz saltar em pedaços as portas do inferno (Mt. 28:18; Rm. 16:20); ainda que levemos conosco um corpo sujeito à morte, ele nos é vida. Enfim, tudo que ele tem é nosso, e nele temos todas as coisas e em nós nenhuma...
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XV, parágrafo 5)

“... Porque nossa confiança, nossa glória e única âncora de nossa salvação é que Jesus Cristo Filho de Deus é nosso, e que também nós somos nele filhos de Deus e herdeiros do reino dos céus, chamados à esperança da bem-aventurança eterna; e isso não por nossa dignidade, mas pela benignidade de nosso Deus...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XVII, parágrafo 1)

... Pois este [o homem], considerado segundo a própria natureza, não tem nada que possa mover a Deus por misericórdia; nada, senão sua miséria...
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XVII, parágrafo 4)

“... Tampouco discutirei com pertinácia com aquele que quiser atribuir aos santos o título de perfeição, contanto que a defina como o faz Agostinho: ‘... quando chamamos perfeita a virtude dos santos, para sua perfeição se requer o conhecimento de sua imperfeição, ou seja, que deveras e com humildade reconheçam quão imperfeitos são’ [Agostinho, Contra duas epist. Pelag. III 7, 19; MSL 44, 602; CSEL 60, 508, 12ss]...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XVII, parágrafo 15)

... Primeiro, tenhamos como certo que o reino dos céus não é um estipêndio [salário] de servos, mas uma herança de filhos, na posse da qual entrarão somente aqueles a quem o Senhor tiver eleito como tais (Ef. 1:5-18); e isso não por outro motivo senão pela adoção...
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XVIII, parágrafo 2)

“... Em primeiro lugar, que cada um considere em seu interior quão duro e difícil é abandonar e renunciar não apenas a todas as nossas coisas, mas sobretudo a si mesmo. E, no entanto, é com essa primeira lição que Cristo inicia seus discípulos, quer dizer, todos os fiéis. Depois os mantém durante o curso de toda a vida sob a disciplina da cruz, a fim de que não se afeiçoem nem ponham seu coração na cobiça e na confiança dos bens presentes. Numa palavra, trata-os de tal forma que, para onde olharem, em toda a amplitude do mundo, não vejam senão desesperação. De tal maneira que Paulo diz: ‘Se é só para esta vida que pusemos a esperança em Cristo, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens’ [1Co. 15:19]. E, a fim de que não esmoreçam com tais angústias, o Senhor os assiste e os adverte a levantarem a cabeça e olharem para cima, para que encontrem nele a bem-aventurança, que não veem neste mundo. Chama a essa bem-aventurança ‘prêmio’, ‘salário’ e ‘retribuição’, não estimando o mérito das obras, mas dando a entender ser uma compensação por suas opressões, sofrimentos e afrontas etc. Portanto, não há perigo algum em nós, a exemplo da Escritura, chamarmos à vida eterna ‘remuneração’, uma vez que o Senhor nela recebe os seus, que passam dos trabalhos ao repouso, da aflição à prosperidade, da tristeza à alegria, da pobreza  à abundância, da ignomínia à glória. Finalmente, que Ele transmuta todos os males que padeceram em bens muito maiores. Dessa maneira, não há inconveniente algum em pensar que a santidade de vida é o caminho; não que ela seja o que nos abre a porta para entrar na glória do reino dos céus, mas que por ela Deus encaminha e guia seus eleitos à manifestação dessa glória, pois seu beneplácito é glorificar aqueles a quem santificou (Rm. 8:30)... Não há coisa mais certa e clara que promete salário às boas obras; e isso não para encher nosso coração de vanglória, mas para ajudar a debilidade de nossa carne...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XVIII, parágrafo 4)

“... Se é verdadeiro o que diz Cristo, ‘Onde está vosso tesouro, ali estará também vosso coração’ [Mt 6:21], de igual modo que os filhos deste século têm por costume empregar todo o seu entendimento em adquirir e amontoar as coisas que podem trazer-lhes os deleites da vida presente, assim também é preciso que os fiéis, vendo que esta vida há de passar como um sonho, transfiram as coisas das que deveras querem usufruir ao lugar onde hão de viver para sempre. Devemos, pois, imitar aqueles que desejam mudar-se para outro lugar, no qual determinaram estabelecer sua morada permanente. Estes enviam por diante toda sua fazenda e tudo o que possuem, e não lhes causa pena carecer disso durante algum tempo, pois se consideram tanto mais ditosos quanto maiores bens têm no lugar onde hão de passar toda a vida. Se acreditarmos que o céu é nossa terra, para lá devemos enviar todas as nossas riquezas, e não as reter aqui, onde teremos de deixá-las de uma hora para outra, quando partirmos. E como as transportaremos? Ajudando os pobres em suas necessidades, já que o Senhor tem em conta tudo quanto lhes for dado, como se fora dado a Ele mesmo (Mt. 25:40). Daí aquela bela promessa: ‘ao Senhor empresta quem dá ao pobre’ (Pv. 19:17). E: ‘Aquele que semeia com generosidade também com generosidade colherá’ (2Co. 9:6). Porque tudo aquilo que usamos por caridade com nossos irmãos fica depositado nas mãos do Senhor... podemos concluir deles senão a pura propensão à indulgência divina para conosco, uma vez que, para animar-nos a fazer o bem, o Senhor promete que nenhuma obra nossa será perdida, embora elas sejam, em essência, indignas de comparecer diante de sua presença.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XVIII, parágrafo 6)

“... Logo, essa justiça de Deus refere-se mais à verdade de sua promessa que à equidade de pagar-nos o que nos é devido. Nesse sentido, há um trecho notável de Agostinho. Como este homem santo não duvidou em repeti-lo muitas vezes como algo memorável, eu, da mesma forma, não o julgo indigno de o repetirmos de memória muitas vezes. Diz: ‘Fiel é o Senhor, que se fez nosso devedor, não tirando coisa alguma de nós, mas nos prometendo tudo’ [Agostinho, In Ps. 32 enarr. II serm. 1,9 MSL 36, 284; In Ps. 109, 1 MSL 37, 1445; In Ps. 83, 16, ibid. col. 1068; Serm. 111, 5; 158, 2; 245, 5. 6 MSL 38, 641.836.1184].”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XVIII, parágrafo 7)

“... Porque nenhum de nós é capaz de guardar os mandamentos. E como, por isso, ficamos excluídos da justiça da Lei, é mister nos acolhermos em outro refúgio, a saber, na fé em Cristo. Por conseguinte, assim como o Senhor remete ao doutor da Lei à mesma Lei (Mt. 19:17), porque sabia que estava cheio de vã confiança nas obras, a fim de que por ela aprendesse a reconhecer-se como pecador e sujeito à eterna condenação, igualmente o Senhor, em outro lugar, consola com a promessa de sua graça sem fazer menção alguma da Lei aos que já estavam humilhados com semelhante conhecimento de si mesmos: ‘Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e Eu vos farei descansar; e encontrareis descanso para vossas almas’ (Mt. 11:28-29).”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XVIII, parágrafo 9)

“... Os leitores me perdoarão se não me demoro em refutar tais tolices, mas digo que, sem ser atacadas, quebrar-se-ão pela própria debilidade. Parece-me correto, no entanto, responder a uma objeção que formulam [os opositores], a qual, por ter certa aparência de verdade, poderia suscitar algum escrúpulo nas pessoas simples...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XVIII, parágrafo 10)