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30 março 2015

Institutas 30

“2. A liberdade cristã, em meu entender, consta de três partes. A primeira é que a consciência dos fiéis, quando tratam de buscar confiança de sua justificação diante de Deus, levante-se por cima da Lei e esqueça-se de toda justiça legal. Porque como a Lei, conforme já provado, não deixa ninguém justo, ou devemos ser excluídos de toda esperança de ser justificados, ou é necessário nos vermos livres dela de tal maneira que não tenhamos nada que ver com nossas obras... Assim que, quando se trata de nossa justificação, é preciso, sem fazer menção alguma da Lei e abandonando toda ideia sobre as obras, abraçarmos somente a misericórdia de Deus, e, afastando os olhos de nós mesmos, olharmos somente a Jesus Cristo. Porque aqui não se pergunta de que maneira somos justos. O que se pergunta é de que maneira nós, sendo injustos e indignos, somos considerados justos. Bem, se nossa consciência quer ter alguma certeza acerca disso, não deve dar entrada nenhuma à Lei. Tampouco deve alguém deduzir daqui que a Lei seja supérflua e de nada sirva aos fiéis, pois ela não deixa de ensiná-los, exortá-los e incitá-los ao bem, ainda eu, no que se refere ao tribunal de Deus, não tenha lugar em sua consciência...
4. A outra parte da liberdade cristã, que depende da primeira, é que as consciências obedeçam à Lei não porque estão coagidas pela necessidade da Lei, mas porque, livres do jugo da Lei, obedeçam a Deus de boa vontade... Se olham para a Lei, veem que tudo o que tentam e pretendem fazer está maldito. E  ninguém pode se enganar pensando que sua obra, apesar de imperfeita, não é de todo má, e que, portanto, tudo o que há nela de bom é aceito por Deus, porque a Lei, ao exigir um amor perfeito, condena toda imperfeição, a menos que seu rigor seja de antemão mitigado. Que cada um, pois, considere suas obras, e verá que o que lhe parecia bom é transgressão da Lei, enquanto não é perfeito...
5. Eis aqui como todas as nossas obras estão sob a maldição da Lei quando examinadas ao modo da lei. Como as pobres almas sentir-se-iam alegremente dispostas às obras se acreditavam que não obteriam senão maldição? Pelo contrário, se, livres da severa disposição da Lei, ou antes liberadas de todo o rigor da Lei, ouvem que Deus as chama com suavidade e ternura paterna, respondem àquele que as chama com grande alegria e felicidade e o seguem aonde quer que Ele as leve. Em resumo: todos os que estão sob o jugo da Lei são semelhantes aos servos, aos quais seus amos cada dia lhes impõem tarefas que cumprir: eles não pensam haver feito nada nem se atrevem a comparecer diante de seus amos sem ter primeiro realizado plenamente a tarefa que lhes decretaram. Em contraposição, os filhos que são tratados mais benigna e liberalmente pelos pais não temem apresentar diante deles suas obras imperfeitas e incompletas, e até com algumas falhas, confiados que sua obediência e boa vontade serão agradáveis aos pais, ainda que não as tenham realizado com tanta perfeição quanto queriam... (Malaquias 3:17)...
7. A terceira parte da liberdade cristã é que, diante de Deus, não nos preocupemos com as coisas externas... diante de Deus, é-nos permitido realizá-las ou omiti-las indiferentemente. Decerto nos é muito necessário o conhecimento de tal liberdade, pois, de modo contrário, não conseguiremos tranquilidade de consciência nem terão fim nossas superstições... Se alguém começar a duvidar se é lícito usar linho em seus lenços, camisas, toalhas e guardanapos, depois não estará seguro nem sequer de poder usar cânhamo, e, no fim, começará até a duvidar de ser lícito usar estopa. E dará voltas ao redor de si, perguntando-se se pode cear sem guardanapos, ou não, se pode abrir mão das toalhas. Se alguém acha que parecerá ilícita uma ceia um pouco mais delicada, em breve não comerá tranquilo nem sequer pão preto ou alimentos vulgares, porque lhe virá à mente a ideia de que poderia sustentar seu corpo com alimentos ainda mais inferiores. Se hesitar quanto a um vinho mais fino, logo não beberá com a consciência tranquila nem aguapé, e finalmente não se atreverá a tocar nem a água que for mais doce e clara que outra. Em resumo: irá tão longe em sua loucura que terá por gravíssimo pecado passar por cima de uma palhinha atravessada, como se diz...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XIX, parágrafos 2-7)

“Diz Paulo: ‘Eu sei que nada é impuro (e, por impuro, entenda-se profano) em si mesmo; uma coisa torna-se impura somente para quem a considera impura’ (Rm 14:14). Com estas palavras, coloca sob nossa liberdade todas as coisas exteriores, contanto que nossa consciência esteja segura dessa liberdade perante Deus...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XIX, parágrafo 8)

A liberdade cristã, que deve ser considerada em todas as suas partes, é uma realidade espiritual cuja firmeza consiste totalmente em aquietar, perante Deus, as consciências atemorizadas, quer estejam inquietas e preocupadas pela remissão de seus pecados, quer estejam ansiosas para saber se as obras imperfeitas e repletas dos vícios da carne agradam a Deus, quer estejam atormentadas com respeito ao uso das coisas indiferentes...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XIX, parágrafo 9)

“... ‘À liberdade fostes chamados; porém, não useis a liberdade de pretexto para servirdes à carne, mas servi-vos uns aos outros, por amor’ (Gl 5:13). E assim é, em verdade. Nossa liberdade não nos foi dada contra nossos próximos fracos, dois quais a caridade nos faz ser servidores; mas para que, tendo tranquilidade de consciência perante Deus, vivamos também em paz entre os homens.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XIX, parágrafo 11)

“... ‘Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém; tudo me é permitido, mas nem tudo edifica. Que ninguém busque seu próprio bem, mas o do outro’ (1Co 10:23-24). Não pode haver coisa mais clara que esta regra: que usemos de nossa liberdade se disso resultar proveito para o próximo; mas que nos abstenhamos dela se for prejudicial ao próximo... Portanto, é próprio de um homem pio pensar que lhe foi concedido o livre poder das coisas externas para que, assim, esteja mais preparado para realizar os deveres da caridade.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XIX, parágrafo 12)

“... Pois a consciência é um meio entre Deus e o homem; porque o homem não é capaz de suprimir em si mesmo aquilo que sabe, mas isso o persegue até levá-lo ao arrependimento. É isto o que Paulo quer dizer quando afirma que a consciência dá testemunho aos homens, acusando ou defendendo seus raciocínios (Rm 2:15). Um simples conhecimento podia estar no homem como que sufocado. Por isso, o sentimento que coloca o homem perante o julgamento de Deus é como uma salvaguarda, concedida para surpreender e espiar todos os seus segredos, a fim de que nada fique oculto, mas que tudo venha à luz. Daí nasceu aquele antigo provérbio: a consciência é como mil testemunhas [Quintilianus, De institut. Orat. V 11, 41]...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XIX, parágrafo 15)