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23 abril 2025

"O peso da glória" (C.S. Lewis)

Alguns trechos do ensaio "O peso da glória", de C.S. Lewis, encontrados no livro com o mesmo título:

'[...] De fato, ao levar em consideração as desavergonhadas promessas de recompensa e a surpreendente natureza das recompensas prometidas nos Evangelhos, parece-nos que o Senhor considera que nossos desejos não são muito fortes, e sim muito fracos. Somos criaturas medíocres, brincando com bebida, sexo e ambição, quando a alegria infinita nos é oferecida, como uma criança ignorante que prefere fazer castelos na lama em meio à insalubridade por não imaginar o que significa o convite de passar um feriado na praia. Nos contentamos com muito pouco.'

'[...] O jovem estudante, no início do estudo da gramática grega [uma analogia usada por Lewis], não poderá ter a mesma expectativa de prazer ao ler Sófocles que um adulto conhecedor do grego, da mesma forma que quem ama anseia pelo casamento ou o general pela vitória. Ele [o jovem estudante da analogia] terá de começar lutando por boas notas, ou para escapar de punições, ou para agradar os pais, ou, na melhor das hipóteses, na esperança de um bom futuro, que no presente ele é incapaz de imaginar ou desejar. Assim, sua posição se assemelha em parte à do mercenário; a recompensa que irá conquistar, na verdade, será uma recompensa natural e apropriada, mas ele não saberá disso até recebê-la. Claro que ele a receberá gradativamente; a satisfação vai prevalecendo aos poucos sobre o mero trabalho, e ninguém é capaz de indicar um dia ou hora em que uma coisa terminou e a outra começou. Mas é somente à medida que se aproxima da recompensa que ele se tornará apto a desejá-la em si; de fato, o poder de assim desejá-la é em si mesmo uma recompensa. Em relação ao Céu, o cristão está numa posição muito semelhante à desse jovem estudante. Aqueles que alcançaram a vida eterna na visão de Deus sabem muito bem, sem sombra de dúvida, que isso não é o resultado de mero suborno, mas a própria consumação de seu discipulado terreno. Todavia, nós que ainda não a alcançamos não podemos saber disso da mesma maneira, nem mesmo podemos começar a saber disso de alguma forma, exceto ao continuarmos a obedecer e ao encontrarmos a primeira recompensa de nossa obediência em nosso poder gradativo de desejar a recompensa definitiva. Na proporção em que cresce o desejo, nosso temor, a não ser que seja um desejo mercenário, vai diminuindo e se mostrará, finalmente, um absurdo. Mas, para a maioria de nós, isso provavelmente não acontecerá no espaço de um dia; a poesia substitui a gramática, o evangelho substitui a lei, o anseio transforma a obediência, de modo tão gradual quanto a maré desencalha um navio.'

'[...] De fato, se fomos feitos para o Céu, o desejo pelo nosso lugar apropriado já estará em nós, mas ainda não está associado a seu verdadeiro objeto e parecerá até mesmo como rival daquele objeto. Penso que é isso mesmo que encontramos. Não há dúvida de que existe um ponto em que minha analogia do jovem estudante entra em colapso.'

'[...] Se um bem transtemporal e transfinito é o nosso destino real, qualquer outro bem em que nosso desejo se fixa deve ser, em certo sentido, falacioso, e deve testificar, no melhor cenário, apenas uma relação simbólica com aquilo que verdadeiramente trará satisfação.'

'[...] Ao falar desse desejo por nossa própria pátria longínqua [o céu, a glória], que já pode ser encontrado em nós mesmos agora, sinto certa timidez. Estou quase cometendo uma indecência ao tentar escancarar o segredo inconsolável em cada um de nós. É um segredo que machuca tanto que você se vinga dele chamando-o de nomes tais como nostalgia, romantismo e adolescência. Esse também é o segredo [o aparente "mistério" do céu, da glória] que nos cutuca com certa doçura quando, em conversa muito íntima, a menção a ele se torna iminente e ficamos meio sem jeito, o que nos faz rir de nós mesmos. É o segredo que não conseguimos esconder e sobre o qual não podemos falar, embora desejemos fazer ambas as coisas. Não conseguimos falar dele, pois é o desejo por algo que de fato nunca apareceu em nossa experiência. Não podemos escondê-lo, pois nossa experiência constantemente o está sugerindo e traímos a nós mesmos como fazem os amantes com a simples menção de um nome. Nossa saída mais comum é chamar isso de beleza e nos comportar como se isso desse um jeito no assunto. A saída proposta por [WilliamWordsworth era identificar isso com certos momentos de seu próprio passado, mas isso tudo não passa de trapaça. Se Wordsworth voltasse a esses momentos no passado, ele não teria encontrado a coisa em si, mas somente recordações dela; aquilo de que ele se lembrou seria em si mesmo uma recordação. Os livros ou a música nos quais pensamos que a beleza estava localizada nos trairão, se confiarmos neles; não é que isso estava neles, apenas que veio por meio deles, e aquilo que veio por intermédio deles era apenas um anseio. Essas coisas — a beleza, a recordação de nosso próprio passado — são boas imagens daquilo que realmente desejamos, mas, se forem confundidas com a coisa em si, tornam-se ídolos mudos, partindo o coração de seus adoradores. Elas não são a coisa em si; são apenas a fragrância de uma flor que nunca encontramos, o eco de uma melodia que nunca ouvimos, notícias de um país que nunca visitamos.'

*[Neste ponto, devemos lembrar que C.S. Lewis é o autor de "As Crônicas de Nárnia", por exemplo]*
'[...] Você acha que estou elaborando um encantamento mágico? Talvez esteja; lembre-se, porém, de seus contos de fada. Encantamentos são usados para quebrar a mágica, bem como para induzi-la, e você e eu temos necessidade do encantamento mais forte que se puder achar, a fim de despertar-nos da mágica maligna do mundanismo que está colocada sobre nós há quase cem anos. Quase todo o nosso sistema educacional tem sido direcionado no sentido de silenciar essa tímida e persistente voz interior; quase todas as nossas filosofias modernas têm sido idealizadas para nos convencer de que o bom ser humano pode ser encontrado neste mundo. No entanto, é uma coisa marcante perceber que essas filosofias do progresso ou da evolução criativa, elas mesmas, dão testemunho relutante da verdade de que nosso alvo real se encontra em outro lugar. Quando querem nos persuadir de que o mundo é o nosso lar, observe como eles realizam isso. Começam com a tentativa de convencê-lo de que a Terra pode ser transformada em Céu, abrandando assim a sua sensação de exílio no mundo em seu estado atual. A seguir, eles dizem a você que esse acontecimento feliz está ainda num futuro muito distante, confundindo assim o seu conhecimento de que a pátria não é aqui nem agora. Finalmente, com receio de que o transtemporal possa despertar e estragar todo o evento, eles usam qualquer tipo de retórica disponível para manter longe de seus pensamentos a lembrança de que, mesmo que toda a felicidade prometida pudesse chegar ao ser humano no mundo, ainda assim, cada geração iria perdê-la com a morte, inclusive a última geração, e toda a história se transformaria em nada, nem mesmo uma história, para todo sempre.'

'[...] As promessas das Escrituras podem ser resumidas, de modo geral, em cinco enunciados. É prometido a nós (1) que estaremos com Cristo; (2) que seremos como ele; (3) com imensa riqueza de imagens, que teremos “glória”; (4) que seremos, de alguma forma, alimentados ou saciados ou entretidos; e (5) que teremos uma espécie de posição oficial no universo — governando cidades, julgando anjos, sendo pilares no templo de Deus. A primeira pergunta que faço acerca dessas promessas é: “Por que precisaríamos de qualquer outra senão a primeira?” Poderá algo ser acrescentado à concepção de estar com Cristo? Pois deve ser verdade, como um velho escritor diz, que quem possui Deus e tudo mais não tem mais do que quem possui somente Deus. Acredito que, mais uma vez, a resposta está na natureza dos símbolos, pois, mesmo que se possa escapar de nossa percepção à primeira vista, ainda assim é verdadeiro que, qualquer concepção de estar com Cristo que a maioria de nós pode agora formar, não será muito menos simbólica do que as outras promessas. Essa concepção irá introduzir ideias de proximidade no espaço e de conversação agradável, como nós compreendemos a ideia de conversação no presente, e provavelmente concentrará na humanidade de Cristo com a exclusão de sua divindade. E, de fato, verificamos que aqueles cristãos que dão atenção somente a essa primeira promessa sempre a preenchem com imagens realmente bem terrenas — até mesmo com imagens nupciais... De forma alguma, eu viria a condenar tais imagens. Com sinceridade de coração, eu desejaria poder me aprofundar ainda mais nelas do que faço agora e oro para que ainda possa fazê-lo. Mas o meu argumento aqui é que também isso é apenas um símbolo, semelhante à realidade em alguns aspectos, porém diferente dela em outros sentidos, e, assim, necessita de correção dos diferentes símbolos nas outras promessas. A variação das promessas não significa que alguma outra coisa além de Deus será a nossa felicidade definitiva; mas porque Deus é mais do que uma Pessoa, e para que não imaginemos a alegria de sua presença em termos muito exclusivamente relacionados à nossa pobre experiência presente do amor pessoal, com todas as suas limitações e monotonia, são fornecidas diversas imagens que se corrigem e se equilibram umas às outras.'

'[...] Quando comecei a pesquisar sobre esse assunto, fiquei chocado em saber que cristãos tão diversos como Milton, Johnson e Tomás de Aquino consideravam a glória celestial muito abertamente como fama ou boa reputação, mas não a fama conferida por nossos semelhantes, criaturas humanas — e sim a fama com Deus, aprovação ou (poderia dizer) “apreciação” da parte de Deus. Foi então, quando pensei mais a respeito disso, que percebi que essa concepção seria bíblica; nada pode eliminar da parábola o elogio divino, “Muito bem, servo bom e fiel!”. Com isso, uma grande parte daquilo que tenho pensado toda minha vida desmoronou como um castelo de cartas. De repente, lembrei-me de que ninguém pode entrar no Céu senão como uma criança; e nada é mais óbvio numa criança — não numa criança envaidecida, mas numa boa criança — como o seu grande e não disfarçado prazer de ser elogiada e isso não se aplica apenas a uma criança, mas também a um cão ou a um cavalo. Aparentemente, aquilo que eu confundi com humildade durante todos esses anos me impediu de compreender o que é, na verdade, o prazer mais humilde, mais típico de crianças e das criaturas — sim, o prazer específico daquele que é inferior; o prazer do animal diante do ser humano, de uma criança diante de seu pai, de um estudante diante do professor, da criatura diante do Criador. Não, não estou esquecendo como o mais inocente dos desejos pode ser horrivelmente parodiado em nossas ambições humanas, ou como muito rapidamente, em minha própria experiência, o prazer lícito do elogio, daqueles a quem era meu dever agradar, torna-se o veneno mortal da autoadmiração. No entanto, pude detectar um momento — um momento muito, muito curto — antes de isso acontecer, durante o qual a satisfação de ter agradado a quem eu verdadeiramente amava e temia era pura. Isso é suficiente para elevar nossos pensamentos para aquilo que poderá acontecer quando a alma redimida, muito além de qualquer esperança e quase além do que se pode acreditar, por fim toma conhecimento de que agradou aquele a quem foi criada para agradar. Nessa hora, não haverá qualquer espaço para a soberba. A alma estará livre da infeliz ilusão da soberba. Sem nenhuma mancha daquilo que agora denominamos autoaprovação, a alma se regozijará da maneira mais inocente possível naquele propósito para o qual Deus a designou, e o momento que curará para sempre seu velho complexo de inferioridade também irá afogar seu orgulho mais profundamente do que o livro de Próspero [parece ser uma referência ao personagem da peça de Shakespeare: "A Tempestade"].'

'[...] A humildade perfeita não dá lugar para a modéstia. Se Deus estiver satisfeito com a obra, a obra pode ficar satisfeita consigo mesma... Posso imaginar alguém dizer que não gosta da minha ideia de Céu como um lugar em que recebemos “tapinhas nas costas”. Entretanto, um mal-entendido arrogante está por detrás desse desgosto. No fim, aquela Face que é o prazer ou o terror do universo deverá se voltar para cada um de nós, seja com uma expressão, seja com outra, conferindo glória inexprimível ou infligindo vergonha que jamais poderá ser curada ou disfarçada. Recentemente, li num periódico que o fundamental é como pensamos em Deus. Pelo amor de Deus, não, não é! Como Deus pensa em nós não apenas é mais importante, é infinitamente mais importante. Na verdade, como pensamos nele não tem importância senão na medida em que esse pensamento esteja relacionado à forma como ela pensa em nós. Está escrito que nós “devemos comparecer perante” ele, que apareceremos, que seremos examinados. A promessa da glória é a promessa, quase que incrível e somente possível pela obra de Cristo, de que alguns de nós, que qualquer um de nós que realmente escolher [na perspectiva dos 5 pontos (TULIP): escolher à partir da "graça irresistível", ou ser escolhido à partir da "eleição incondicional"], realmente sobreviverá a esse exame, e encontrará aprovação, isto é, agradará a Deus. Agradar a Deus (…) ser um ingrediente real da felicidade divina (…) ser amado por Deus, não apenas objeto de sua clemência, mas ser agradável a ele, como um artista tem prazer em sua obra ou um pai tem prazer em seu filho, parece ser algo impossível, um peso ou fardo de glória que nossos pensamentos dificilmente podem aguentar. Mas é assim.'

'[...] A glória, como o cristianismo me ensina a aguardar, acaba por satisfazer meu desejo original e, de fato, por revelar um elemento naquele desejo que eu não havia notado. Ao cessar de considerar, por um momento, as minhas próprias necessidades, comecei a entender melhor o que realmente preciso. Quando há pouco tentei descrever nossos anseios espirituais, omiti uma de suas mais curiosas características. Normalmente, percebemos isso somente no momento em que a visão se esvai, quando a música termina, ou quando a paisagem perde sua luz celestial. Aquilo que sentimos então foi bem descrito pelo poeta Keats como “a viagem de volta para o eu habitual”. Você sabe o que quero dizer. Por alguns minutos tivemos a ilusão de pertencer a esse mundo. Agora despertamos para descobrir que essa não é a realidade. Somos simplesmente espectadores. A beleza sorriu, mas não para nos receber; sua face se voltou em nossa direção, mas não para nos ver. Não fomos aceitos, recebidos ou convidados para dançar. Podemos sair quando desejarmos, podemos ficar se quisermos: “Ninguém nota nossa presença”. Um cientista poderá responder que, como a maior parte das coisas que chamamos de beleza é inanimada, não é de surpreender que não nos note. Claro que isso é verdade, mas não é dos objetos físicos que estou falando e, sim, daquela alguma coisa indescritível da qual se tornaram mensageiros por um momento. E parte do amargor que se mistura à doçura dessa mensagem se deve ao fato de que raramente parece ser uma mensagem dirigida a nós, mas algo que ouvimos casualmente. Por amargor quero dizer dor, não ressentimento. Nem deveríamos sugerir que fôssemos notados de alguma forma. Contudo, ansiamos por isso. A sensação de que somos tratados como estranhos neste universo, o anseio por sermos reconhecidos, de encontrar alguma resposta, de construir uma ponte entre o vazio que se escancara entre nós e a realidade, tudo isso faz parte de nosso segredo inconsolável. E, certamente, desse ponto de vista, a promessa da glória, no sentido descrito, se torna altamente relevante para o nosso profundo desejo, pois glória significa ter uma boa avaliação de Deus, ser aceito por Deus, obter reposta, reconhecimento e acolhimento no coração das coisas. A porta em que estivemos batendo por toda a nossa vida se abrirá afinal.'

'[...] Talvez pareça muito primitivo descrever a glória como o fato de ser “notado” por Deus, mas essa é quase a linguagem do Novo Testamento. O apóstolo Paulo promete àqueles que amam a Deus não que conhecerão a Deus, como seria de se esperar, mas que serão conhecidos por Deus (1Coríntios 8:3). É uma promessa estranha. Será que Deus não está ciente de todas as coisas o tempo todo? Entretanto, isso ecoa terrivelmente em outra passagem do Novo Testamento. Ali, somos advertidos de que isso poderá acontecer a qualquer um de nós, o momento de aparecer finalmente diante da face de Deus e ouvir apenas as palavras desesperadoras: “Nunca os conheci. Afastem-se de mim”. De certa forma, tão obscuro para o intelecto quanto insuportável para as emoções, poderemos ser banidos da presença daquele que está presente em todo lugar e eliminados do conhecimento daquele que a tudo conhece. Poderemos ser deixados total e absolutamente do lado de fora — repelidos, exilados, alienados e cabal e indescritivelmente ignorados. Por outro lado, podemos ser chamados, bem-vindos, recebidos, reconhecidos. Andamos todos os dias sobre o fio da navalha entre essas duas possibilidades incríveis. Aparentemente, então, a nostalgia que sentimos por toda a vida, nosso anseio por sermos reunidos à alguma coisa no universo da qual nos sentimos agora separados, por estar do lado de dentro de alguma porta que sempre avistamos pelo lado de fora, não é um capricho neurótico, mas o mais verdadeiro indicador de nossa situação. Ser, finalmente, convidado para entrar seria uma glória e honra além de todos os nossos méritos e, também, a cura para uma velha dor.'

'[...] E isso me leva para o outro sentido da glória — a glória como brilho, esplendor, luminosidade. Fomos feitos para brilhar como o Sol, para receber a Estrela da Manhã. Acredito que começo a ver o que isso significa. De certo modo é claro que Deus já nos deu a Estrela da Manhã: você pode sair e apreciar a dádiva nas melhores manhãs, se levantar da cama cedo. Você pode perguntar o que mais poderíamos pedir. Ah, mas queremos muito mais do que isso — alguma coisa a que os livros sobre estética dão pouca atenção. Contudo, os poetas e as mitologias conhecem tudo a respeito disso. Não desejamos meramente ver a beleza, embora, sabe Deus, mesmo isso já seria uma recompensa e tanto. Queremos algo mais que não pode ser posto em palavras — ser unidos à beleza que vemos, estar nela e recebê-la em nós mesmos, nos banhar nela, nos tornar uma parte dela. É por isso que povoamos o ar, a terra e a água com deuses e deusas, ninfas e elfos [Neste ponto, devemos nos lembrar novamente que C.S. Lewis é o autor de "As Crônicas de Nárnia"] — para que, embora não consigamos, ainda assim essas projeções possam apreciar em si mesmas aquela beleza, graça e poder de que a natureza é a imagem. É por isso que os poetas nos contam essas falsificações tão amáveis. Falam como se o vento oeste fosse de fato penetrar uma alma humana; mas não pode. Dizem a nós que “a beleza nascida de um som murmurante” vai adentrar um rosto humano; mas não irá. Pelo menos, não por ora, pois, se levarmos a sério o imaginário das Escrituras, se crermos que algum dia Deus nos dará a Estrela da Manhã e fará com que vistamos o esplendor do Sol, então poderemos especular que tanto os mitos antigos quanto a poesia moderna, tão falsos quanto a história, poderão estar muito perto da verdade na forma de profecia. No presente, estamos no lado de fora do mundo, do lado errado da porta. Discernimos o frescor e a pureza da manhã, mas ambos não nos tornam novos e puros. Não conseguimos nos envolver no esplendor que vemos, mas todas as páginas do Novo Testamento sussurram umas às outras o rumor de que as coisas não serão sempre assim. Um dia, permitindo Deus, nós entraremos. Quando as almas humanas se tornarem tão perfeitas em obediência voluntária, como é a criação inanimada em sua obediência sem vida, então essas almas vestirão sua glória, ou melhor, a glória maior da qual a natureza é somente um primeiro esboço, pois não estou propondo nenhuma fantasia pagã de ser absorvido na natureza. A natureza é mortal; iremos viver mais do que ela. Quando todos os sóis e nebulosas tiverem morrido, cada um de vocês ainda estará vivo. A natureza é apenas a imagem, o símbolo; mas é o símbolo que as Escrituras me convidam a usar. Somos convidados para transpor a natureza, para irmos além do esplendor que ela refletiu.'

'[...] Sendo assim, pode-se perguntar qual seria o uso prático dessas especulações [pensamentos sobre o céu, a glória] pelas quais estou me deixando levar. Posso imaginar pelo menos um uso prático. É possível que alguém pense exageradamente sobre sua potencial glória futura; dificilmente ele pensará muito frequentemente ou profundamente sobre a glória de seu próximo. O fardo, ou o peso, ou o ônus da glória de meu próximo deveria ser depositado sobre as minhas costas, um fardo tão pesado que somente a humildade é capaz de carregar, e o peso esmagará o orgulhoso. É coisa séria viver numa sociedade de possíveis deuses e deusas, e lembrar que a pessoa mais chata e desinteressante com quem você pode conversar poderá um dia ser uma criatura que, se você a visse agora, seria fortemente tentado a adorar [céu]; ou, então, um horror e uma corrupção tal qual você encontra agora, se for o caso, apenas num pesadelo [inferno]. O dia todo, em certo sentido, ajudamos uns aos outros a chegar a um desses dois destinos [céu ou inferno]. É à luz dessas possibilidades irrefutáveis, é com a reverência e a circunspecção que as caracterizam que deveríamos conduzir nossas interações uns com os outros, todas as amizades, todos os amores, toda a diversão, toda a política. Não existem pessoas comuns. Você nunca conversou com um mero mortal. Nações, culturas, artes, civilizações — essas coisas são mortais, e a vida dessas coisas é para nós como a vida de um mosquito. No entanto, é com os imortais que nós fazemos piadas, trabalhamos e casamos; são os imortais aqueles a quem esnobamos e exploramos — horrorosos imortais ou eternos esplendorosos. Isso não significa que devamos ter uma atitude solene o tempo todo. Devemos participar do jogo. Mas a nossa alegria deveria ser do tipo (e, de fato, é a mais alegre possível) que existe entre as pessoas que, desde o início, levam-se mutuamente a sério — sem leviandade, sem superioridade, sem presunção. Nossa caridade deve ser um amor real e custoso, com sentimento profundo pelos pecados, apesar dos quais amamos o pecador — não simplesmente tolerância, ou a indulgência que faz do amor uma paródia, como a leviandade parodia a alegria. Muito próximo dos elementos [pão e vinho] do sacramento da Ceia do Senhor, seu próximo é o elemento [carne e sangue] mais santo percebido pelos sentidos. Se seu próximo for cristão, ele será santo num sentido quase tão semelhante, pois nele Cristo também está vere latitat [do latim: "verdadeiramente escondido"] — o glorificador e o glorificado, o próprio Deus da Glória está verdadeiramente oculto.'


****** OBSERVAÇÃO IMPORTANTE: diante de várias declarações e especulações [como o próprio autor denomina no trecho logo acima] encontradas no ensaio "O peso da glória", é preciso considerar o imaginário de C.S. Lewis, que dentre diversas obras no gênero da ficção, escreveu a conhecida obra "Crônicas de Nárnia", e também era amigo pessoal de J.R.R. Tolkien, autor de "O Senhor dos Anéis", por exemplo. ******