Alguns trechos do ensaio "Ato falho", de C.S. Lewis, encontrados no livro "O peso da glória":
'[...] Há algum tempo, quando eu estava usando a oração prevista para o quarto domingo depois da Trindade {*} em minhas orações privativas, percebi que havia cometido um ato falho. Embora minha intenção fosse a de orar para ter força para passar pelas provações temporais e que eu, finalmente, não perdesse as dádivas eternas, achei que tivesse orado para que eu passasse pelas coisas eternas de modo que eu, finalmente, não perdesse as coisas temporais.'
{*} "Ó Deus, protetor de todos que confiam em ti, sem o qual nada é forte, nada é santo. Aumenta e multiplica sobre nós a tua misericórdia; que, ao ser nosso governante e guia, possamos passar pelas coisas temporais de tal forma que finalmente não percamos as coisas eternas. Concede-nos isso, ó Pai Celestial, por causa de Jesus Cristo Nosso Senhor. Amém." (Nota do Editor, na edição original)
'[...] Entro na presença de Deus com grande temor, para que nada aconteça a mim nesse momento que seja intolerável demais quando eu voltar à minha vida "normal". Não desejo me entusiasmar com alguma resolução que eu possa depois lamentar, pois sei que poderei me sentir muito diferente depois do café da manhã; não quero que nada me aconteça quando estiver diante do altar que venha a se tornar uma cobrança muito grande depois. Seria muito desagradável, por exemplo, levar o dever da caridade (enquanto estiver no altar) tão a sério que, depois do café, eu tivesse de rasgar uma resposta muito severa que tinha escrito para uma pessoa petulante, de quem recebi uma carta ontem, e que eu pretendia postar hoje no correio.'
'[...] O princípio-chave de todas essas precauções continua a ser: guardar-se das coisas temporais. Vejo alguma evidência de que essa tentação não acontece só comigo. Um bom autor (cujo nome eu esqueci) pergunta em algum lugar: “Será que nunca levantamos, apressadamente, de nossa posição de oração (ajoelhados), com medo de que a vontade de Deus pudesse se tornar tão clara se orássemos por mais tempo?”. A história a seguir foi contada como verdadeira. Uma mulher irlandesa, que acabara de sair da confissão {no confessionário}, encontrou nos degraus da capela a mulher que era sua maior inimiga na aldeia. A outra mulher deixou sair de sua boca uma torrente de abuso verbal. “Não é isso uma vergonha para você”, respondeu Biddy, “conversar comigo dessa maneira, sua covarde, e eu num estado de graça, de maneira que não posso responder agora? Mas você não perde por esperar. Não estarei num estado de graça por muito mais tempo”.'
'[...] Esta é minha interminável e recorrente tentação; descer até aquele mar (acredito que foi João da Cruz {Juan de la Cruz} que chamou Deus de mar) e ali não mergulhar, nadar, nem boiar, mas somente pisar e respingar a água, com cuidado para não sair da parte mais rasa, segurando-me na corda salva-vidas, que me conecta às minhas coisas temporais. Isso é diferente das tentações que encontramos no início da vida cristã. Naquele tempo, lutávamos (ao menos eu lutava) contra admitir as reivindicações de tudo que é eterno e, depois que lutávamos, que apanhávamos e nos rendíamos, supúnhamos que tudo seria um mar tranquilo para navegar. Essa tentação vem mais tarde, endereçada àqueles que já admitiram a reivindicação, pelo menos em princípio, e estão até fazendo um esforço para cumpri-la. Nossa tentação é a de olhar intensamente para o mínimo que seria aceito. De fato, somos muito parecidos com os pagadores de impostos honestos, mas relutantes. Aprovamos nosso pagamento de imposto, em princípio, e o fazemos corretamente, mas receamos um aumento nos impostos. Somos muito cuidadosos para não pagar mais do que é necessário e esperamos — muito ardentemente — que depois de pagar o imposto, haverá o suficiente para continuar vivendo a vida. Observe que essas cautelas que o tentador cochicha em nossos ouvidos são todas plausíveis. De fato, não creio que ele tente frequentemente nos enganar (depois do início da juventude) com uma mentira direta. A plausibilidade é esta. É realmente possível ser levado pela emoção religiosa — entusiasmo, como nossos antepassados diziam — em resoluções e atitudes, que não são pecaminosas, mas racionais, não quando somos mais mundanos, mas quando somos mais sábios, de forma que venhamos a nos arrepender mais tarde. Podemos nos tornar conscienciosos ou fanáticos; podemos, naquilo que parece ser zelo, mas é realmente presunção, assumir tarefas que nunca foram a nós destinadas. Essa é a verdade na tentação. A mentira consiste em supor que a nossa melhor proteção seria um cuidado prudente com o nosso bolso, nossas extravagâncias habituais e nossas ambições, mas isso é totalmente falso. Nossa real proteção deve ser buscada em outro lugar; na vida cristã comum, na teologia moral, no pensamento racional estável, no conselho de bons amigos e de bons livros e, se necessário, num líder espiritual capacitado. Aulas de natação são melhores do que uma corda salva-vidas até a praia.'
'[...] Ele {Deus} reivindica tudo [...] Ele não poderá nos abençoar a não ser que ele no tenha. Quando tentamos demarcar dentro de nós uma área que é nossa, acabamos por manter uma área de morte. Portanto, em amor, ele exige tudo. Não existe negociação com ele {Deus}.'
'{Sobre não importar o vício que nos leva ao pecado, C.S. Lewis comenta:} [...] Perderemos o fim para o qual fomos formados e teremos rejeitado a única coisa que nos pode satisfazer {Cristo}. Fará alguma diferença, para um homem {ser humano} que está morrendo no deserto, qual fora a rota escolhida por causa da qual ele perdeu o acesso ao único poço? É impressionante como nesse assunto o Céu e o Inferno falam em uníssono. O tentador me diz: “Tome cuidado. Pense em quanto essa decisão e a aceitação dessa graça vão custar a você”. Contudo, Nosso Senhor também nos diz para calcularmos o custo.'
'[...] Entre eles parece ser claro que ficar remando sem sair do lugar é de pouca importância. Aquilo que importa, o que o Céu deseja e o Inferno teme, é precisamente aquele passo a mais, para fora de nós mesmos, de nosso controle. Ainda assim, não estou em desespero. Neste ponto, torno-me aquilo que alguns iriam chamar de “evangelical”; de qualquer modo um não-pelagiano. Não creio que qualquer esforço da minha vontade possa acabar de uma vez por todas com o desejo por obrigações limitadas, essa ressalva fatal. Somente Deus pode, e tenho fé e esperança de que ele o fará. É claro que não quero dizer com isso que posso, portanto, como se costuma dizer, “sentar confortavelmente”. Aquilo que Deus faz por nós, ele faz em nós. O processo de fazê-lo me parece (e não falsamente) ser como os exercícios repetidos, todos os dias ou todas as horas, por minha própria vontade, em renunciar a essa atitude, especialmente cada manhã, pois cresce sobre mim como se fosse uma nova cobertura cada noite. Fracassos serão perdoados; é a concordância que é fatal, a presença permitida, regularizada, de uma área em nós mesmos que ainda exigimos para nós. Deste lado da morte, talvez nunca consigamos expulsar o invasor para fora de nosso território, mas devemos estar com a Resistance {Resistância francesa na Segunda Guerra Mundial}, não com o governo Vichy {parte da França que fez acordos com os nazistas e estabeleceu um governo provisório}, e isso, até onde posso ver, deve ser reiniciado a cada manhã. Nossa oração matinal deveria ser aquela da Imitação: Da hodie perfecte incipere: “Conceda-me hoje ter um começo sem falhas, pois ainda não fiz nada”.'