Alguns trechos dos livros IV e V de "Confissões", de Agostinho de Hipona:
'Não seja insensata, ó minha alma, nem deixe que o tumulto da loucura ao seu redor ensurdeça os ouvidos do seu coração. Ouça você também. A própria Palavra a chama de volta: ali está o lugar do descanso tranquilo, onde o amor não é abandonado, se ele mesmo não se abandona. [...] Mas eu não me afasto de modo algum, diz a Palavra de Deus. Fixe nela a sua morada, confie a ela tudo o que tem deste mundo, ó minha alma, pelo menos agora que está cansada de vaidades. Confie aos cuidados da Verdade tudo aquilo que recebeu da Verdade, e então nada perderá [...] As partes mortais serão reformadas e renovadas em você: não lhe depositarão no lugar para onde elas descem; mas elas ficarão firmemente unidas a você e subsistirão para todo o sempre diante de Deus, por meio da palavra dele, semente “imperecível, viva e permanente” (1Pe 1.23).' [Confissões IV.16]
'Se as coisas materiais lhe agradam, louve a Deus por elas e retribua seu agrado ao seu Criador, para evitar que essas coisas que lhe agradam desagradem a ele [Deus]. Se as almas lhe agradam, que elas sejam amadas em Deus: pois são mutáveis, mas nele são firmemente estabilizadas; caso contrário, elas passariam e desapareceriam. Que nele elas [as almas] sejam amadas. Você pode e deve dizer-lhes: A ele vamos amar, a ele vamos amar: ele criou todas estas coisas e não está tão distante daqui. Pois ele não as criou e depois foi embora; mas elas são dele e estão nele. Ele está onde se ama a verdade. Está dentro do próprio coração; porém, o coração se desgarrou dele. "Voltem para o seu coração, ó rebeldes" (Is 46.8), e apeguem-se àquele que os criou. Permaneçam com ele, e vocês terão firmeza. Descansem nele, e terão descanso. Para onde vocês querem ir em seus ásperos caminhos? Para onde? O bem que vocês amam vem dele; mas só é bom e agradável em relação a ele, e com justiça se tornará amargo se vocês amarem injustamente qualquer coisa que venha dele, se com isso ele for abandonado. Por que motivo então vocês ainda trilham esses caminhos difíceis e penosos? O descanso não está onde vocês o buscam. O que quer que vocês procurem não vão encontrá-lo onde estão procurando. Vocês buscam uma vida abençoada na terra da morte; ela não está ali. Pois como poderia haver uma vida abençoada onde não há vida?' [Confissões IV.18]
'“Mas nossa verdadeira vida veio ao nosso encontro, carregou a morte e a sufocou na abundância de sua própria vida: com aquela voz de trovão, ele nos chamou de volta para seu lugar secreto, de onde ele veio até nós, primeiro dentro do ventre da virgem onde ele se casou com a criação, nossa carne mortal, para que ela não temesse eternamente ser mortal, e depois disso ‘como um noivo que sai do seu aposento e se lança em sua carreira com a alegria de um herói’ (Sl 19.5). Pois ele não se deteve, mas correu chamando forte com palavras, feitos, morte, descida e ascensão; gritando forte a fim de que voltássemos para ele. Depois ele se afastou de nosso olhar a fim de que pudéssemos voltar para dentro do coração e ali encontrá-lo. Pois ele foi embora e eis que ele está aqui. Ele não permaneceria por muito tempo conosco, mas não nos deixou [...] E ‘Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores’ (1Tm 1.15). A ele minha alma se confessa dizendo-lhe: ‘Cura-me, pois pequei contra ti’ (Sl 41.4). Ó filhos dos homens, até quando vocês serão duros de coração? Mesmo agora, depois da descida da Vida para vocês, não irão se elevar e viver? Mas para onde se elevarão vocês que estão no alto e se pronunciam contra o céu? Desçam para poderem subir e ascender até Deus. Pois vocês, erguendo-se contra ele, decaíram”. Diga isso àquelas almas para que elas possam chorar passando “pelo vale de lágrimas” (Sl 84.6), elevando-as com você para Deus; pois pelo seu Espírito você lhes diz isso, se falar ardendo no fogo da caridade [amor ágape].' [Confissões IV.19]
'Aceita o sacrifício de minhas confissões pelo ministério da minha língua, tu que a originaste e a estimulaste a confessar teu nome. Cura todos os meus ossos, e “todo o meu ser exclamará: Quem se compara a ti, SENHOR?” (Sl 35.10). Pois aquele que te reconhece não te revela o que acontece em seu íntimo, visto que um coração fechado não impede a penetração do teu olhar, nem pode a insensibilidade do coração humano rechaçar tua mão: pois tu o dobras a teu bel-prazer no compadecimento ou na vingança, “e nada escapa ao teu calor” (Sl 19.6). Mas permite que minha alma te louve, para poder te amar; que ela confesse teus gestos de clemência, para poder te louvar. [...] De modo que nossa alma, abandonando seu cansaço, pode elevar-se a ti, apoiando-se nas coisas que tu criaste e passando em seguida para ti, que as criaste de modo tão maravilhoso. E ali, contigo, ela [nossa alma] encontra repouso e fortalecimento verdadeiro.' [Confissões V.1]
'[...] Os injustos acabam tropeçando em ti e justamente se machucando. Afastam-se de tua bondade e, tropeçando em tua justiça, vão caindo em seus caminhos escabrosos. Ignoram, na verdade, que tu estás em toda parte, tu que não podes ser encerrado por lugar nenhum! Somente tu estás perto, mesmo “dos que te abandonam” (Sl 73.27). Que eles voltem e te procurem, pois ao contrário deles que abandonaram seu Criador, tu não abandonaste a tua criação. Que eles se convertam e te procurem. Tu estás lá no coração daqueles que te reconhecem e se entregam a ti, e choram ao te abraçar depois de percorrer todos aqueles ásperos caminhos. Então tu suavemente lhes enxugas as lágrimas, e eles, chorando ainda mais, alegram-se ao chorar exatamente por ti, ó Senhor, não por um ser humano de carne e osso, mas por ti, Senhor, que os criaste, recriaste e fortaleceste. Mas onde estava eu quando não te via? Tu estavas diante de mim, mas de ti eu me afastara, e não me encontrava, e muito menos encontrava a ti.' [Confissões V.2]
'[...] De que me adiantava a máxima elegância do copeiro se eu tinha sede de uma bebida mais deliciosa? Meus ouvidos já estavam cheios de coisas como aquelas, que não me pareciam melhores só por serem apresentadas com palavras mais bonitas; nem mais verdadeiras, só por serem eloquentes; nem mais sábias, só porque o rosto do interlocutor era mais atrativo e a linguagem mais bela. [...] De ti, portanto, eu tinha agora aprendido que nada devia parecer expressar a verdade, só por causa da eloquência; nem, portanto, parecer expressar a falsidade, só por causa da elocução inarmônica; tampouco parecer verdadeira, só porque proferida rudemente; nem, portanto, parecer falsa, só por causa da rica linguagem. Eu tinha aprendido que a sabedoria e a insensatez são como o alimento sadio e o nocivo; como as frases enfeitadas e as toscas; como as vasilhas elegantes e as rústicas: os dois tipos de alimento podem ser servidos nos dois tipos de pratos.' [Confissões V.10]
'[...] Para Milão eu fui, para o bispo Ambrósio, conhecido no mundo inteiro como um dos melhores homens, teu devoto servo, cujo discurso eloquente naquela época distribuía com fartura a farinha do teu trigo, o contentamento de teu azeite e a moderadora intoxicação de teu vinho. Por ti fui levado para ele sem o saber, a fim de que, sabendo, eu fosse levado para ti. À minha chegada, aquele homem de Deus me recebeu como um pai, mostrando-me uma bondade digna de um bispo. Desde aquele momento passei a amá-lo, no início não de fato como um mestre da verdade (que eu absolutamente não esperava mais encontrar na tua Igreja), mas como uma pessoa bondosa para comigo. Atento, eu ouvia sua pregação ao povo, não com aquela atitude que lhe era devida, mas, por assim dizer, investigando sua eloquência. Queria saber se ela correspondia à sua fama; se era mais caudalosa ou menos fluente do que dela se dizia. Ouvia suas palavras com atenção, mas quanto ao assunto eu era como um observador indiferente e zombador. Dava-me prazer a suavidade do seu discurso, mais erudito, embora pelo estilo fosse menos cativante e harmonioso que o de Fausto [mestre dos maniqueístas]. Quanto ao assunto, porém, não havia comparação, pois um divagava entre ilusões maniqueístas, o outro ensinava a salvação da maneira mais sólida possível. Mas “a salvação está longe dos ímpios” (Sl 119.155); e eu era um deles na presença de Ambrósio. E, no entanto, pouco a pouco, sem o saber me aproximava dela cada vez mais.' [Confissões V.23]
'[...] Embora eu não me esforçasse para aprender o que ele [Ambrósio] dizia, querendo apenas ouvir como ele o dizia (pois apenas essa vã preocupação me havia sobrado, não tendo mais esperança de achar um caminho, disponível para o homem, que levasse a ti); mesmo assim, juntamente com as palavras que eu acolhia, também entravam em minha mente as próprias coisas que eu recusava. Eu não conseguia separar as duas coisas. E quando abri o coração para receber a eloquência de suas palavras, nele também entraram as verdades que ele dizia. Mas isso apenas pouco a pouco.' [Confissões V.24]