Alguns trechos dos livros VI e VII de "Confissões", de Agostinho de Hipona:
'Tu, então, ó Senhor, pouco a pouco, com tua mão delicadíssima e cheia de misericórdia, tocando e recompondo o meu coração, me persuadiste, levando-me a considerar o número infinito de coisas em que acreditava sem tê-las visto e sem estar presente quando aconteceram, como tantos fatos da história secular, tantos relatos de lugares e de cidades que eu não tinha visto; tantos amigos, tantos médicos, tantos outros homens; se não acreditássemos nisso, nada poderíamos fazer nesta vida; enfim, com que inabalável certeza eu sabia dizer de que pai e mãe eu tinha nascido, coisa que eu não podia saber, se não acreditasse no que ouvira contar; levando-me a considerar tudo isso, tu me convenceste de que não os que acreditavam nos teus Livros (que tu estabeleceste com tão grande autoridade entre todas as nações), mas sim os que neles não acreditavam deviam ser censurados; não mereciam ser ouvidos os que me diziam: “Como você sabe que aquelas Escrituras foram concedidas à humanidade pelo Espírito do único verdadeiro Deus?”. Pois exatamente essa verdade era a que mais merecia crédito, uma vez que nenhum espírito litigioso de questionamentos blasfemos, dentre os inúmeros que eu tinha lido nos textos contraditórios de filósofos, podia arrancar de mim esta crença: “Que tu existes” (embora eu não soubesse o que poderias ser) e “Que o governo das coisas humanas te pertence”.' [Confissões VI.7]
'[...] Nisso eu acreditava, às vezes de modo mais intenso, às vezes menos; mas sempre acreditei que tu existes e te preocupas conosco, embora não soubesse o que pensar de tua essência e do que conduzia ou reconduzia a ti. Eu era então demasiado fraco para descobrir a verdade mediante o raciocínio puro: exatamente por isso precisava da autoridade das Sagradas Escrituras. Eu agora havia começado a crer que tu nunca terias conferido uma autoridade tão insuperável a essa Escritura em todas as partes do mundo, se não tivesses a intenção de, com isso, levar as pessoas a crerem em ti e a te procurar. Na verdade agora aquelas coisas que antes pareciam estranhas nas Escrituras, que geralmente me ofendiam, depois de ouvir muitas delas explicadas de modo satisfatório, eu as atribuía à profundidade dos mistérios. Agora a autoridade das Escrituras me parecia mais venerável e mais digna de fé, no sentido de que, embora sua leitura estivesse disponível para todos, ela reservava a majestade de seus mistérios no âmbito de seu significado mais profundo, descendo ao nível de todos na imensa simplicidade de suas palavras e humildade de seu estilo, mas exigindo a máxima aplicação de pessoas sérias. Assim ela pode acolher a todos em seu amplo seio e, através de passagens estreitas, conduzir alguns poucos em direção a ti, em maior número, porém, do que aconteceria se ela não pairasse no alto amparada por tão elevada autoridade; tampouco abrigaria multidões em seu seio se não fosse por sua santa humildade. Sobre isso eu meditava, e tu estavas comigo. Eu suspirava, e tu me ouvias. Eu vacilava, e tu me conduzias. Eu vagava pela ampla estrada do mundo, e tu não me abandonavas.' [Confissões VI.8]
'Agora, ó meu Socorro, tu me havias libertado daquelas cadeias, e eu indagava: “De onde provém o mal?”, sem achar nenhuma resposta. Mas tu não permitias que, devido a alguma das minhas hesitações mentais, eu fosse levado para longe da fé segundo a qual acreditava não só que tu existes, mas também que tua substância é imutável; que tu cuidas de nós e julgarás os homens; que em Cristo, teu Filho e nosso Senhor, e nas Sagradas Escrituras, impostas pela autoridade da Igreja [...], tu havias estabelecido o caminho da salvação da humanidade, visando aquela vida que haverá depois da morte. Com essas verdades seguras e irremovíveis estabelecidas em minha mente, eu indagava ansioso: “De onde provém o mal?”. Que tormentos extravasavam do meu coração, que gemidos, ó meu Deus! Mas até mesmo a isso teus ouvidos estavam abertos, e eu não sabia. E quando em silêncio buscava, aqueles sofrimentos silenciosos de minha alma soavam como altos brados implorando a tua misericórdia. Tu sabes o que eu sofri, e ninguém sabia. [...] No entanto, tudo aquilo subia chegando à tua escuta, tudo aquilo que bramia nos gemidos do meu coração. E meus desejos estavam diante de ti, e a luz dos meus olhos não estava comigo: pois ela estava dentro de mim, e eu estava do lado de fora. E ela não se concentrava em lugar algum, mas eu estava concentrado em coisas contidas num lugar definido, onde não encontrava lugar nenhum para meu descanso. [...] Essas coisas resultavam de minha ferida, pois tu humilhaste o soberbo como alguém que está ferido. Minha arrogância me separava de ti. Sim, minha cara inchada de orgulho fechava-me os olhos.' [Confissões VII.11]
'Mas tu, Senhor, “reinarás para sempre” (Sl 102.12); contudo, não te manténs eternamente zangado conosco, porque te compadeces de nosso pó e cinza. Foi do agrado dos teus olhos corrigir minhas deformidades. Com estímulos interiores tu me despertaste para que me sentisse pouco à vontade enquanto não te mostrasses à minha visão interior. Assim, com a mão secreta do teu medicamento, o inchaço diminuiu, e a vista turvada e obscurecida da minha mente, com os unguentos ardidos de tristezas salutares, ia dia a dia sendo curada.' [Confissões VII.12]
'E tu, querendo primeiro me mostrar como “Deus se opõe aos orgulhosos, mas concede graça aos humildes” (Tg 4.6; 1Pe 5.5) e com que grande ato de tua misericórdia tu tinhas traçado para os homens o caminho da humildade, quando tua Palavra se fez carne e habitou entre os homens, providenciaste para mim, por meio de alguém inflado do mais extraordinário orgulho, certos livros dos platônicos, traduzidos do grego para o latim. Neles eu li, não realmente com estas mesmas palavras, mas com este mesmo sentido, reforçado por muitos e diferentes argumentos, que “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. Ele estava com Deus no princípio. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito. Nele estava a vida, e esta vida era a luz dos homens. A luz brilha nas trevas, e as trevas não a derrotaram” (Jo 1.1-5). E li que a alma humana, mesmo não sendo ela mesma a luz, dá “testemunho da luz” (v. 8), mas “a Palavra”, sendo Deus, era “a verdadeira luz, que ilumina todos os homens” (v. 9). “Aquele que é a Palavra estava no mundo, e o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o reconheceu” (v. 10). “Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam. Contudo, aos que o receberam, aos que creram em seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus” (v. 11-12).' [Confissões VII.13]
'Sendo assim admoestado por aqueles livros para voltar-me para dentro de mim mesmo, entrei no mais fundo de minha alma, tendo a ti como guia. Isso eu consegui porque vieste em meu socorro. Entrei e vi com os olhos da alma, acima de meus próprios olhos e acima de minha mente, a Luz Imutável. Não esta luz comum, que toda carne contempla, nem como se fosse uma luz mais forte da mesma natureza, como se seu brilho fosse muitas vezes multiplicado e com sua grandeza enchesse todo o espaço. Não era assim a luz que vi: era diferente, totalmente diferente de todas as outras. Tampouco pairava sobre minha alma como óleo sobre água, nem como o céu sobre a terra. Mas acima de minha mente, porque a mim me criou; e abaixo dela porque por ela eu fui criado. Quem conhece a verdade sabe o que é essa luz; e quem a conhece conhece a eternidade. O amor a conhece. Ó Verdade que és Eternidade! Ó Amor que és Verdade! Ó Eternidade que és Amor! Tu és meu Deus, por ti suspiro noite e dia. Quando pela primeira vez te conheci, tu me elevaste para que eu pudesse ver que havia coisas que eu poderia vir a enxergar, mas que ainda não via. Tu reduziste a fraqueza de minha visão despejando sobre mim teus mais intensos raios de luz, e eu tremi de amor e assombro [...] E eu ouvi: “Sim, realmente EU SOU O QUE SOU” (Êx 3.14). E ouvi como ouve o coração, e não havia espaço para dúvidas. Eu mais facilmente duvidaria de que estou vivo do que da inexistência da Verdade, “claramente vista por meio das coisas criadas” (Rm 1.20).' [Confissões VII.16]
'“Aquele que é a Palavra tornou-se carne” (Jo 1.14), para que a tua sabedoria, por meio da qual criaste todas as coisas, pudesse fornecer o leite para nossa condição infantil. Pois eu não ainda era humilde o suficiente para aprovar o Senhor Jesus Cristo, nem sabia para onde nos levaria a sua fraqueza. Pois tua Palavra, a eterna Verdade, muito acima das partes da tua criação, eleva os que diante dela se humilham. Mas neste mundo inferior ela construiu para si mesma, usando nossa argila, uma humilde morada, para poder humilhar e conquistar para si aqueles que estivessem dispostos a sujeitar-se a ela, curando-os de sua soberba e fomentando neles o amor, para que eles não avançassem mais em sua autoconfiança, mas, pelo contrário, aceitassem sua própria fraqueza, vendo a seus pés a Divindade humilhada vestindo nossas “roupas de pele” (Gn 3.21), e, exaustos, pudessem entregar-se a ela, para que ela os levantasse.' [Confissões VII.24]
'Mas depois de ler aqueles livros dos platônicos, e tendo assim aprendido a investigar a verdade incorpórea, eu vi “os atributos divinos de Deus, compreendidos por meio das coisas criadas” (Rm 1.20). Mesmo repelido, eu percebia aquilo que, por entre as trevas de minha mente, não me era permitido contemplar, tendo certeza de que tu existias e eras infinito, mas não estavas difuso num espaço, finito ou infinito; e que tu realmente sempre és quem és sem jamais mudar, sem variar em parte alguma, nem em movimento algum; e que todas as outras coisas derivam de ti é um fato provado apenas por esta causa segura: elas existem. Dessas coisas eu tinha certeza, mesmo estando inseguro demais para deleitar-me contigo. Eu tagarelava como se fosse um entendido no assunto, mas se não procurasse o caminho em Cristo, nosso Salvador, provavelmente eu não teria sido instruído, mas destruído. Pois, a essa altura, totalmente imerso em meu próprio castigo, eu havia começado a querer parecer sábio; mas, em vez de me encher de remorso, meu conhecimento me enchia de orgulho. Onde estava aquela edificação do amor a Deus construída sobre o fundamento da humildade, ou quando deveriam aqueles livros [dos platônicos] me ensinar isso? Eu creio que tu quiseste que eu me debruçasse sobre eles, antes de estudar as tuas Escrituras, para que ficasse impresso em minha memória o modo como eles me afetaram e para que, depois, quando eu fosse dominado pelas tuas Escrituras e quando minhas feridas fossem tratadas por tuas mãos que curam, eu pudesse distinguir entre a presunção e a contrição; distinguir entre aqueles que viam para onde deviam ir, mas sem enxergar o caminho, e o caminho que conduzia não apenas a contemplar o país abençoado, mas também a morar nele. Pois se eu primeiro me formasse em tuas Sagradas Escrituras, e se tu, em minha familiarização no uso delas, as tivesses tornado atraentes para mim, e se eu, em seguida, me tivesse debruçado sobre aqueles outros volumes [livros dos platônicos], eles talvez tivessem me afastado do sólido chão da piedade; ou então, se eu tivesse continuado naquela estrutura mental que tinha adquirido neles, poderia ter pensado que ela fora adquirida apenas por meio dos estudos daqueles livros.' [Confissões VII.26]
'[...] Com enorme avidez eu me fixei, então, nos veneráveis escritos do teu Espírito, especialmente os do apóstolo Paulo. Em consequência disso, desapareceram para mim as dificuldades nos pontos em que outrora ele me parecia contradizer a si mesmo, e o texto de seu discurso parecia não concordar com os testemunhos da Lei e dos Profetas. Aqueles textos me pareceram ter sempre o mesmo aspecto, e eu aprendi a “exultar com tremor” (Sl 2.11). Assim comecei, e todas as outras verdades que tinha lido naqueles outros livros, eu as descobri aqui em meio aos louvores à tua graça. Quem a enxerga não deve orgulhar-se, “como se não fosse” uma dádiva, não apenas do que enxerga, mas também da capacidade de enxergar, pois “o que você tem que não tenha recebido?” (1Co 4.7). Por meio disso ele não apenas é exortado a contemplar a ti que és sempre o mesmo, mas também a curar-se e a agarrar-se a ti. Assim, quem não consegue te ver a distância pode, todavia, escolher aquele caminho que leva para ti, para te enxergar e te possuir. Pois “no íntimo do meu ser tenho prazer na Lei de Deus; mas vejo outra lei atuando nos membros do meu corpo, guerreando contra a lei da minha mente, tornando-me prisioneiro da lei do pecado que atua em meus membros” (Rm 7.22-23). [...] “Miserável homem que eu sou! Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!” (Rm 7.24), que tu geraste coeterno contigo mesmo, “como o princípio do teu caminho” (Pv 8.22), em quem o príncipe deste mundo não achou nada digno da morte, e no entanto tu o entregaste à morte, e assim foi apagada a escrita que nos condenava. Isso não está nos escritos dos platônicos. Suas páginas não apresentam a imagem dessa piedade, “a escrita da dívida” (Cl 2.14), o sacrifício que te agrada de “um espírito quebrantado; um coração quebrantado e contrito” (Sl 51.17), a salvação do povo, “a Cidade Santa” (Ap 21.2), “o Espírito como garantia do que está por vir” (2Co 5.5). Nelas [nas páginas dos escritos dos platônicos] ninguém canta: “A minha alma descansa somente em Deus; dele vem a minha salvação. Somente ele é a rocha que me salva; ele é a minha torre segura! Jamais serei abalado!” (Sl 62.1-2). Nelas ninguém ouve o convite dele: “Venham a mim todos os que estão cansados e sobrecarregados” (Mt 11.28). Nelas se desdenham os ensinamentos de teu Filho por ele ser “manso e humilde de coração” (v. 29); “porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos, e as revelaste aos pequeninos” (v. 25). [...] Essas coisas penetravam em meu coração de modo admirável, quando eu lia “o menor dos apóstolos” (1Co 15.9) e meditava sobre tuas obras, tremendo muitíssimo.' [Confissões VII.27]