Indicação de livro: "Estudos no Sermão do Monte", D. Martyn Lloyd-Jones
No capítulo 28 [sobre Mateus 5:38-42], intitulado "NEGANDO-SE E SEGUINDO A CRISTO", o autor (D.M. Lloyd-Jones) escreve:
'O que importa não é tanto que me compete voltar a outra face, e, sim, que eu me encontre em um estado que me capacite a estar pronto a fazê-lo. Essa doutrina envolve toda a minha perspectiva sobre mim mesmo. Ninguém pode pôr em prática o que nosso Senhor aqui ilustrou, a menos que já tenha rompido definitivamente consigo mesmo, no tocante aos direitos que tem sobre sua própria pessoa, no tocante aos direitos de determinar o que fará, e, sobretudo, no tocante ao dever que tem de romper com aquilo que comumente chamamos de “direitos pessoais”. Em outras palavras, sob hipótese nenhuma devemos fixar a atenção sobre nós mesmos. Conforme já averiguamos, a maior dificuldade nesta vida é, em última análise, esse constante interesse quanto ao nosso próprio “eu”. E o que nosso Senhor está inculcando aqui é que essa nossa tendência deve ser inteiramente eliminada em nós. Precisamos desvencilhar-nos desse pendor de estarmos sempre atentos a qualquer ataque ou insulto, ou seja, de estarmos sempre numa atitude defensiva. Era isso que nosso Senhor tinha em mente. Todas a propensões dessa ordem precisam desaparecer; e isso, como é natural, significa que temos de deixar de lado a sensibilidade quanto ao nosso próprio “eu”, essa condição inteira segundo a qual o nosso próprio “eu” está à flor da pele, postado em um tão precário equilíbrio que a mais leve perturbação é capaz de desequilibrá-lo. Sim, é necessário que essa nossa atitude cesse inteiramente. A condição acerca da qual nosso Senhor falava aqui reveste-se de natureza tal que torna o crente em alguém que simplesmente não pode ser atingido. Talvez essa seja a maneira mais radical que exista para expressar essa declaração de Jesus. No capítulo anterior, relembrei-lhe aquilo que o apóstolo Paulo dissera sobre si mesmo, em 1Coríntios 4:3, onde escreveu: “Todavia, a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós, ou por tribunal humano; nem eu tão pouco julgo a mim mesmo”. Paulo entregara toda a questão do seu julgamento aos cuidados de Deus, e, dessa maneira, entrara em um estado e condição em que não podia ser atingido. Esse é o ideal que deveríamos ter por alvo – essa indiferença para com o próprio “eu” e seus interesses.'
'Certa declaração feita pelo famoso George Müller, a respeito de si mesmo, parece ilustrar mui claramente esse ponto. Ele escreveu: “Houve um dia em que morri, morri totalmente, morri para George Müller e suas opiniões, preferências, gostos e vontade; morri para o mundo, sua aprovação e censura; morri para a aprovação ou condenação da parte de meus próprios irmãos e amigos. E, desde então, tenho-me esforçado tão somente para ser aprovado diante de Deus”. Essa é uma assertiva sobre a qual deveríamos ponderar profundamente. Não posso imaginar sumário mais perfeito e adequado do ensino do Senhor Jesus, neste parágrafo [sobre Mateus 5:38-42], do que essas palavras de George Müller. Müller foi capacitado a morrer para o mundo, para a sua aprovação ou censura, foi capacitado a morrer até mesmo para a aprovação ou censura de seus amigos e mais íntimos companheiros. E também deveríamos observar a ordem de prioridades que Müller usou em sua declaração. Em primeiro lugar, ele falou sobre a aprovação ou a censura do mundo; em seguida, sobre a aprovação ou censura de seus íntimos e amigos. Não obstante, ele declarou haver obtido sucesso em ambos esses aspectos, e o segredo disso, no dizer do Müller, era que ele havia morrido para si mesmo, para o próprio George Müller. Não há que duvidar que em suas palavras encontramos uma bem definida sequência de valores. O aspecto mais remoto é o mundo; e então figuram os seus amigos e colegas. Contudo, a questão mais dificultosa de todas é o homem morrer para si mesmo, para a sua própria aprovação ou censura de si mesmo.'
'Podemos tornar-nos imunes às opiniões das massas populares e das turbamultas, imunes às opiniões do mundo. Entretanto, ainda precisamos levar em conta a aprovação ou a censura daqueles que estão mais próximos de nós, os quais nos são queridos, daqueles que estão intimamente conosco. A opinião desse últimos é mais altamente valorizada por nós, pelo que também mostramo-nos mais sensíveis para com essa opinião. Sem embargo, o crente deve atingir aquele estágio segundo o qual consegue ultrapassar até mesmo essa barreira, segundo o qual percebe que não se pode deixar controlar por essas questões. Finalmente, o crente poderá chegar ao último e final estágio, o qual concerne àquilo que um homem pensa sobre si mesmo – sua própria avaliação, sua própria aprovação ou julgamento de si mesmo. Pode-se notar, em muitas biografias, que muitos homens conseguiram libertar-se dessa sensibilidade para com o mundo e para com os seus entes queridos, embora tivessem descoberto que isso envolve uma tremenda batalha, um conflito quase impossível de ser sustentado, em que o indivíduo esforça-se por preocupar-se consigo mesmo e com o juízo que ele faz de si. Mas, enquanto estivermos preocupados com este último estágio, na realidade não estaremos livres do perigo de sermos influenciados por aqueles outros dois aspectos anteriores, que são bem mais fáceis. Por conseguinte, a chave para o completo êxito, de conformidade com George Müller, é que precisamos morrer para nós mesmos. George Müller havia morrido para si mesmo, para as suas opiniões, para as suas preferências, para os seus gostos e aversões, para a sua própria vontade, enfim. A sua preocupação exclusiva, o seu grande ideal, era ser aprovado por Deus.'
'O ponto que se segue, como é óbvio, é que somente quem é crente pode agir dessa maneira. É em relação a isso que encontramos o aspecto doutrinário deste parágrafo [sobre Mateus 5:38-42]. Ninguém pode alcançar esse nível espiritual, a não ser que seja um crente. Temos aí a própria antítese, o oposto do que sucede no caso do homem natural. É difícil imaginar-se qualquer coisa mais afastada daquilo que o mundo geralmente descreve como um cavalheiro. Em consonância com o mundo, um cavalheiro é alguém que se empenha pela sua honra e pelo seu bom nome, chegando a entrar em luta pelos mesmos. Embora um cavalheiro não mais costume desafiar para um duelo àquele que o insultou, no momento em que é insultado, visto estar proibido de tal reação pela lei, isso é o que ele faria, se pudesse. Essa é a ideia do mundo sobre um cavalheiro e sobre sua honra pessoal; e, nessa atitude, sempre está em foco a autodefesa. Isso aplica-se não somente ao indivíduo propriamente dito, mas também à pátria e a tudo quanto pertence a esse indivíduo. É indubitável que não incorremos em erro ao dizer que o mundo despreza o homem que não defende esses valores, pois o mundo admira o tipo agressivo de pessoa, aquela pessoa que se impõe aos outros e que está sempre pronta para defender a si mesma e àquilo que denomina de sua honra. Portanto, afirmamos claramente, sem pedir desculpas a quem quer que seja, que ninguém pode colocar esse ensinamento de Jesus em prática se não for um crente autêntico. Um homem precisa haver nascido de novo e ser uma nova criatura, antes que possa viver como tal. Ninguém pode morrer para si mesmo, a menos que também seja capaz de asseverar: “... logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim...” (Gálatas 2:20). Essa é a doutrina do renascimento espiritual.'
'Sempre que eu notar em mim mesmo alguma reação de defesa própria, ou o senso de contrariedade, ou o sentimento de que fui ferido e prejudicado, ou de que alguém me fez alguma injustiça – no instante mesmo em que eu sentir que esse mecanismo de defesa entrou em ação, simplesmente cumpre-me examinar-me tranquilamente, dirigindo a mim mesmo determinadas perguntas, tais como: “Exatamente por qual motivo essa questão me aborrece? Por que fico triste ao deparar-me com ela? Qual é a minha verdadeira preocupação diante dela? Estou realmente interessado por algum princípio geral de justiça e retidão? Fico verdadeiramente comovido e perturbado pelo fato que, em meu coração, estou procurando defender uma causa justa ou, se confessasse com honestidade, apenas estou preocupado comigo mesmo? Será tudo isso apenas aquele terrível e sujo egocentrismo e autointeresse, aquela condição mórbida que tomou conta de mim? Será tudo isso apenas um orgulho doentio e desagradável?” Esse autoexame é essencial se quisermos ser vitoriosos no que toca a essa questão. Por experiência própria, todos conhecemos bem essas coisas. Quão fácil é explicarmos tudo isso de outra maneira qualquer. Precisamos dar ouvidos àquela voz que fala dentro de nós. E então, se essa voz disser: “Você sabe perfeitamente bem que tudo isso não passa desse seu horrendo orgulho, que o leva a concentrar sua atenção em você mesmo, em sua reputação e em sua grandeza” – então teremos de admitir e confessar o fato. Naturalmente, esse reconhecimento nos será extremamente doloroso. Não obstante, se quisermos elevar-nos até ao nível do ensino de nosso Senhor, teremos de passar por esse processo. Nisso consiste a negação do próprio “eu”.'
'Uma outra coisa que pertence ao campo prático e que se reveste da mais elevada importância é percebermos a extensão do controle do próprio “eu” sobre as nossas vidas. Você já tentou aquilatar a intensidade desse controle? Examine a si mesmo, a sua vida, o seu trabalho diário e as coisas que você faz, bem como os contatos que você precisa estabelecer com outras pessoas. Reflita, por alguns instantes, acerca da extensão do controle do seu “eu” sobre todos esses aspectos de sua vida. É espantosa e terrível a descoberta da extensão do envolvimento desse autointeresse e dessa autopreocupação, inclusive no campo da pregação do Evangelho. Trata-se de uma descoberta verdadeiramente horrível. Estamos interessados em expor o Evangelho corretamente. Mas, por qual razão? Visando à glória de Deus, ou por causa de nossa glória pessoal? Tudo quanto fazemos e dizemos, a impressão que causamos ao conhecermos casualmente outras pessoas – sobre o quê, realmente nos preocupamos? Se você analisasse todas as facetas de sua vida, e não apenas suas ações e sua conduta, mas também o seu modo de vestir-se, a sua aparência, e tudo o mais, você ficaria admirado ao descobrir a extensão dessa atitude doentia em favor do próprio “eu”.'
'Avancemos, entretanto, mais um passo. Pergunto às vezes se por acaso já percebemos até que ponto essa miséria, essa infelicidade, esse fracasso e essas tribulações em nossas vidas devem-se a apenas uma coisa, a saber, ao nosso próprio “eu”. Examine os acontecimentos da semana anterior, considere em sua mente e relembre, em sua consciência, os momentos ou os períodos de infelicidade e tensão, a sua irritabilidade e o seu mau gênio, as coisas que você disse e fez, das quais você agora se envergonha, aquelas coisas que realmente o deixaram perturbado e desconcertado. Examine todas essas coisas uma por uma, e ficará surpreso ao descobrir que quase cada uma dessas coisas acabará retornando à questão do próprio “eu”, à questão dessa sensibilidade consigo mesmo, desse cuidado com o próprio “eu”. Não há que duvidar quanto a isso. O “eu” é a principal causa da infelicidade que marca as nossas vidas. Você talvez diga: “Ah, mas a falta não é realmente minha, pois outras pessoas muito me têm provocado”. Pois bem, faça uma análise de você mesmo e da outra pessoa, e você acabará descobrindo que a outra pessoa mui provavelmente agiu daquela forma por causa do próprio “eu”, e também que você está ressentido pela mesma razão. Se ao menos você tivesse demonstrado a atitude certa para com a outra pessoa, conforme nosso Senhor passa a ensinar no parágrafo seguinte [sobre Mateus 5:43-48], então você lamentaria as atitudes daquela outra pessoa e oraria por ela. Em última análise, pois, você mesmo é o culpado. Ora, é ótimo quando consideramos pelo seu lado prático essa questão, de maneira honesta e franca. A maior parte da infelicidade e das tristezas, a maior parte das nossas dificuldades na vida e na experiência diária derivam-se dessa origem e fonte que é o próprio “eu”.'
'Entretanto, galguemos até um nível superior a esse, e reflitamos sobre a questão conforme uma perspectiva doutrinária. É muito bom considerarmos o próprio “eu” segundo um ângulo doutrinário e teológico. De acordo com o ensino das Escrituras, o “eu” foi o responsável pela queda do homem no pecado. Não fora o “eu” e o pecado jamais teria penetrado neste mundo. O diabo foi suficientemente arguto para reconhecer o poder do “eu”, e por esse motivo é que a tentação foi lançada em termos egoísticos. É como se Satanás tivesse dito: “Deus não está sendo justo com vocês. Vocês têm uma queixa e um ressentimento justos”. E o homem concordou com a sugestão, e essa foi a própria causa da queda. Não haveria qualquer necessidade de conferências internacionais a fim de procurarem solucionar os problemas das nações, nestes nossos dias, não fora a queda no pecado. A dificuldade inteira resume-se no próprio “eu” e na sua imposição. Nisso consiste o próprio “eu’, doutrinalmente considerado. Mas essa atitude egoísta sempre significa um desafio contra Deus: sempre significa que eu me entronizei no lugar de Deus, e, por conseguinte, sempre será uma atitude que me separa dele.'
'Afinal de contas, todos os momentos de infelicidade na nossa vida devem-se a essa separação entre nós e Deus. A pessoa que realmente goza de comunhão com Deus e com o Senhor Jesus Cristo é uma pessoa feliz. Não importa se ela está em uma masmorra, se os seus pés estão amarrados ao tronco, ou se está sendo queimada viva em uma fogueira. Ainda assim, tal pessoa será feliz, porquanto encontra-se em comunhão com Deus. Não tem sido essa a experiência dos santos através de todos os séculos? Portanto, a causa final de qualquer miséria ou ausência de alegria é a separação de Deus, e a única causa dessa separação, entre nós e Deus, é o nosso próprio “eu”. Sempre que nos sentirmos infelizes, isso significará que, de alguma forma ou de outra, estaremos olhando para nós mesmos e pensando somente em nós mesmos, ao invés de desfrutarmos de companheirismo com Deus. De conformidade com as Escrituras Sagradas, o homem estava destinado a viver inteiramente para a glória de Deus. Cumpria-lhe amar ao Senhor Deus de todo o coração, com toda a sua alma, de toda a sua mente e com todas as suas energias. Considerados em todos os seus aspectos, o homem estava destinado a viver de modo a que sua vida redundasse na glória do Senhor. Por conseguinte, constitui pecado qualquer desejo de glorificar-se a si mesmo e de salvaguardar os interesses do próprio “eu”, porque, quando assim agimos, estamos olhando para nós mesmos, ao invés de olharmos para Deus e buscarmos a Sua honra e glória. Ora, é precisamente essa atitude humana que Deus condenou. Essa é a atitude que ficou sujeita à maldição divina, à ira de Deus. E, conforme compreendo o ensino escriturístico, eventualmente a santidade aponta para esse fator, para nosso livramento dessa vida egocêntrica.'
'Em outras palavras, a santidade não deveria ser concebida primariamente em termos de ações, mas antes, em termos de nossa atitude para conosco. Essencialmente, não está em pauta o fato que eu não estou praticando determinadas coisas e estou tentando fazer outras. Existem pessoas que nunca praticaram certas coisas, mas ainda assim são reputadas pecaminosas, porquanto vivem tomadas de orgulho próprio. Assim sendo, devemos considerar essa questão em termos do próprio “eu”, em termos de nosso relacionamento para com nós próprios, e, uma vez mais, devemos perceber que a essência da santidade consiste em que sejamos capazes de asseverar, como o fez George Müller, que morremos, morremos completamente para esse “eu” que tanta devastação tem causado em nossas vidas e em nossa experiência diária.'
'Essa é a linguagem das Escrituras. Assim sendo, podemos afirmar que a razão da morte de Cristo na cruz era que você e eu pudéssemos ser salvos e desvinculados dessa vida do próprio “eu”. “E ele morreu por todos...” diz novamente o apóstolo, em 2Coríntios 5. Nós cremos que “um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos...” E, conforme o ensino de Paulo, qual foi a razão disso? “...para que os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2Coríntios 5:14-15). Isso espelha a vida para a qual fomos chamados. Não fomos chamados para uma vida caracterizada pela autodefesa e pela autossensibilidade, e, sim, para uma vida em que, mesmo quando insultados, não retaliemos; mesmo quando recebamos uma bofetada no lado direito do rosto, estejamos prontos a voltar também a outra face; mesmo quando um homem chega a demandar conosco diante dos tribunais, querendo arrebatar-nos a túnica, estejamos dispostos a entregar-lhe também a capa; quando alguém nos compelir a caminhar uma milha, caminhemos duas; e quando alguém vier a pedir alguma coisa de nós, não retruquemos: “Isso é meu”. Pelo contrário, que digamos: “Se este homem está padecendo alguma necessidade, e se eu posso ajudá-lo, assim farei”. Cumpre-nos dizer: “Já rompi definitivamente comigo mesmo, morri para mim mesmo, e a minha exclusiva preocupação é a glória e a honra de Deus”. Essa é a modalidade de vida para a qual fomos chamados pelo Senhor Jesus Cristo. Ele morreu com o intuito que você e eu pudéssemos viver dessa maneira.'