No capítulo 1 (“Deus e a fé são inimigos da razão e da ciência?”) do livro "Gunning for God", de John C. Lennox, este autor faz referência a outro livro denominado ‘The Bible, Protestantism and the Rise of Science', de Peter Harrison, como pode ser observado abaixo:
“Na verdade, como Alfred North Whitehead e outros apontaram, há fortes evidências de que a cosmovisão bíblica esteve intimamente envolvida com o desenvolvimento meteórico da ciência nos séculos 16 e 17... Mais recentemente, O professor de Ciência e Religião de Oxford, Peter Harrison, tem defendido um aprofundamento da tese de Whitehead. Ele mostra que não foi somente o teísmo em geral, mas também os princípios particulares da interpretação bíblica usados pelos Reformadores que contribuíram significativamente para o desenvolvimento da ciência [Peter Harrison, ‘The Bible, Protestantism and the Rise of Science', Cambridge University Press, 1998].”
Seguem abaixo alguns trechos traduzidos de um artigo escrito por Peter Harrison sobre o mesmo tema, publicado na revista "Science and Christian Belief", e intitulado "The Bible and the Emergence of Modern Science":
“Minha tese, expressa de maneira simples, é que os Reformadores Protestantes, com alguma ajuda dos humanistas da renascença, patrocinaram uma nova abordagem para o texto bíblico, e ao fazê-lo, permitiram uma revolução hermenêutica que trouxe em seu rastro uma nova abordagem para os objetos naturais. Ao rejeitar a alegoria e insistindo, ao invés disso, que a Bíblia, o livro da palavra de Deus, deveria ser lida em seu sentido literal ou histórico, eles inadvertidamente tornaram possível uma nova abordagem para aquele outro ‘livro’, o livro da natureza. Essa nova abordagem foi essencialmente uma abordagem científica.”
“Em sua obra clássica sobre hermenêutica bíblica no início do período moderno, ‘O Eclipse da Narrativa Bíblica’ (1974), Hans Frei observa que ‘a afirmação que o sentido literal ou gramatical é o verdadeiro sentido da Bíblia tornou-se programática para as tradições de interpretação Luteranas e Calvinistas’. À luz do sistema de interpretação medieval que acabamos de delinear, este implicaria, é claro, uma rejeição da alegoria, e isso é precisamente o que nós encontramos quando nos voltamos para os principais reformadores. Lutero anunciou, em seu estilo tipicamente colorido, que alegoria era para ‘mentes fracas’ e ‘homens ociosos’. O sentido literal, ele insistiu, é ‘o maior, melhor, mais forte, em suma toda a substancial natureza e fundamento da Sagrada Escritura’. As Escrituras, na avaliação final de Lutero, foram interpretadas ‘em seu significado mais simples possível’. João Calvino concordou que o exegeta deve procurar o sentido ‘histórico’ ou ‘literal’ do texto, o que ele novamente identificou como o sentido simples das palavras (‘simplici verborum sensu’). Tal como Lutero, ele contrastou esta abordagem com a dos alegorisadores: ‘A Escritura, dizem eles, é fértil e, portanto, tem múltiplos significados... Mas eu nego que esta fertilidade consiste nos vários significados que alguém pode fixar por sua própria vontade. Deixe-nos saber, então, que o verdadeiro significado da Escritura é natural e simples, e deixe-nos adotá-lo e mantê-lo firmemente. Vamos não apenas negligenciar como duvidoso, mas com ousadia vamos deixar de lado, como corrupções mortais, estas pretensas exposições que nos levam para longe do sentido literal. ’ [Calvin, J. The Epistle of Paul the Apostle to the Galatians, Philippians, Ephesians, and Colossians, Parker, T. H. L. (trans.), Grand Rapids; Eerdmans (1964), pp. 84f]”
“Calvino, por exemplo, escreveu que quando Moisés falou em Gênesis do sol e da lua como ‘dois grandes luminares’, ele não estava afirmando alguma verdade filosófica, mas estava adaptando seu discurso ao uso comum.”
“Antes de olhar para estas metáforas dramaticamente revisadas, vale a pena fazer uma breve consideração, tanto para as razões da insistência Protestante na primazia do sentido literal, quanto nas outras características da Reforma que contribuíram com o colapso da mentalidade do simbolismo na Idade Média. Parte da razão para o desejo dos Protestantes de restringir o significado da Escritura ao sentido literal tem certamente a ver com o princípio ‘Sola Scriptura’ (Somente a Escritura). Tanto Lutero, quanto Calvino, desejavam argumentar que a Escritura era uma fonte suficiente p ara o nosso conhecimento de Deus e da Sua vontade. A alegoria, no entanto, distanciava o leitor das palavras da Escritura para longe dos objetos da natureza, que também deveriam ser fontes eloquentes do conhecimento divino.”
“Outros reformadores Protestantes reforçaram o fim das concepções simbólicas da ordem natural. A iconoclastia protestante, por exemplo, evidencia uma profunda desconfiança para com os objetos que supostamente carregavam um significado como símbolos religiosos. Se os objetos da natureza passaram a ser despojados de suas associações simbólicas, é pouco surpreendente que os artefatos humanos, de modo semelhante, foram considerados religiosamente mudos. Eamon Duffy escreveu que a iconoclastia que acompanhou a Reforma Inglesa resultou em ‘um despojamento de observância familiares e queridas, a destruição de um vasto e ressonante mundo de símbolos.’ [Duffy, E. The Stripping of the Altars: Traditional Religion in England, c.1400-c.1580, New Haven: Yale University Press (1992), p. 591. Cf. Aston, M. England’s Iconoclasts, vol. I, Oxford: Clarendon (1988), p. 16; Green, I. The Christian’s ABC: Catechisms and Catechising in England, c.1530-1748, Oxford: Clarendon (1996), pp. 431-437]”
“No culto protestante, o centro das atenções não era mais o drama da missa, mas a pregação da Palavra. Os bancos das Igrejas Protestantes foram tipicamente reorganizados para ficar de frente para o púlpito, ao invés do altar. Esta mudança de foco dos objetos religiosos para palavras também afetou uma mudança significativa na consciência religiosa.”
“Ideias e práticas Protestantes, em suma, desempenharam um papel fundamental nesta profunda transição em que, como Lawrence Stone descreveu, ‘A Europa mudou-se decisivamente à partir de uma cultura de imagem para uma cultura de palavra’. Como consequência desta nova concentração em palavras, mais claramente exemplificada na mudança literalista, objetos naturais foram libertados de sua função subsidiária na questão da exegese bíblica, e se tornaram suscetíveis aos novos princípios ordenadores. Estes, como você pode agora imaginar, foram fornecidos pelas nascentes ciências naturais.”
“Dois comentários finais estão em ordem, e eles dizem respeito à diferença que tudo isso fez na nossa compreensão deste notável período da história e da natureza da própria modernidade, por si só. Em primeiro lugar, há uma visão comum de que o literalismo bíblico é inimigo da ciência. Embora a recente manifestação histórica do fundamentalismo empresta a este ponto de vista um certo crédito, e embora seja indubitavelmente verdadeiro que algumas passagem da Escritura, quando interpretadas em seu sentido literal, foram usadas para suprimir opiniões que foram subsequentemente endossadas pela comunidade científica, eu tenha sugerido que o tipo de mentalidade literalística, característica dos primeiros Protestantes modernos, deu origem a uma cosmovisão que proporcionou um ambiente propício para o florescimento das ciências naturais. A este respeito, então, eu juntei essa linha de historiadores que têm avançado a proposição, reconhecidamente arriscada, de que a ciência moderna e, de fato, a modernidade em geral, tem um profundo débito com o Protestantismo. Em segundo lugar, e na sequência a partir deste ponto, também é comumente assumido que a ciência é um dos principais motores da secularização. Porque as explicações científicas substituem as religiosas, pensa-se, a ciência traz um desencantamento do mundo. Do meu ponto de vista, ocorre exatamente o inverso. O desencantamento do mundo foi realizado, em grande parte, pelas tendências dessacralizadoras da religião Protestante. A remoção de significados religiosos do mundo natural estabeleceu as condições que tornaram possível o florescimento das ciências.”
“Em sua obra clássica sobre hermenêutica bíblica no início do período moderno, ‘O Eclipse da Narrativa Bíblica’ (1974), Hans Frei observa que ‘a afirmação que o sentido literal ou gramatical é o verdadeiro sentido da Bíblia tornou-se programática para as tradições de interpretação Luteranas e Calvinistas’. À luz do sistema de interpretação medieval que acabamos de delinear, este implicaria, é claro, uma rejeição da alegoria, e isso é precisamente o que nós encontramos quando nos voltamos para os principais reformadores. Lutero anunciou, em seu estilo tipicamente colorido, que alegoria era para ‘mentes fracas’ e ‘homens ociosos’. O sentido literal, ele insistiu, é ‘o maior, melhor, mais forte, em suma toda a substancial natureza e fundamento da Sagrada Escritura’. As Escrituras, na avaliação final de Lutero, foram interpretadas ‘em seu significado mais simples possível’. João Calvino concordou que o exegeta deve procurar o sentido ‘histórico’ ou ‘literal’ do texto, o que ele novamente identificou como o sentido simples das palavras (‘simplici verborum sensu’). Tal como Lutero, ele contrastou esta abordagem com a dos alegorisadores: ‘A Escritura, dizem eles, é fértil e, portanto, tem múltiplos significados... Mas eu nego que esta fertilidade consiste nos vários significados que alguém pode fixar por sua própria vontade. Deixe-nos saber, então, que o verdadeiro significado da Escritura é natural e simples, e deixe-nos adotá-lo e mantê-lo firmemente. Vamos não apenas negligenciar como duvidoso, mas com ousadia vamos deixar de lado, como corrupções mortais, estas pretensas exposições que nos levam para longe do sentido literal. ’ [Calvin, J. The Epistle of Paul the Apostle to the Galatians, Philippians, Ephesians, and Colossians, Parker, T. H. L. (trans.), Grand Rapids; Eerdmans (1964), pp. 84f]”
“Calvino, por exemplo, escreveu que quando Moisés falou em Gênesis do sol e da lua como ‘dois grandes luminares’, ele não estava afirmando alguma verdade filosófica, mas estava adaptando seu discurso ao uso comum.”
“Antes de olhar para estas metáforas dramaticamente revisadas, vale a pena fazer uma breve consideração, tanto para as razões da insistência Protestante na primazia do sentido literal, quanto nas outras características da Reforma que contribuíram com o colapso da mentalidade do simbolismo na Idade Média. Parte da razão para o desejo dos Protestantes de restringir o significado da Escritura ao sentido literal tem certamente a ver com o princípio ‘Sola Scriptura’ (Somente a Escritura). Tanto Lutero, quanto Calvino, desejavam argumentar que a Escritura era uma fonte suficiente p ara o nosso conhecimento de Deus e da Sua vontade. A alegoria, no entanto, distanciava o leitor das palavras da Escritura para longe dos objetos da natureza, que também deveriam ser fontes eloquentes do conhecimento divino.”
“Outros reformadores Protestantes reforçaram o fim das concepções simbólicas da ordem natural. A iconoclastia protestante, por exemplo, evidencia uma profunda desconfiança para com os objetos que supostamente carregavam um significado como símbolos religiosos. Se os objetos da natureza passaram a ser despojados de suas associações simbólicas, é pouco surpreendente que os artefatos humanos, de modo semelhante, foram considerados religiosamente mudos. Eamon Duffy escreveu que a iconoclastia que acompanhou a Reforma Inglesa resultou em ‘um despojamento de observância familiares e queridas, a destruição de um vasto e ressonante mundo de símbolos.’ [Duffy, E. The Stripping of the Altars: Traditional Religion in England, c.1400-c.1580, New Haven: Yale University Press (1992), p. 591. Cf. Aston, M. England’s Iconoclasts, vol. I, Oxford: Clarendon (1988), p. 16; Green, I. The Christian’s ABC: Catechisms and Catechising in England, c.1530-1748, Oxford: Clarendon (1996), pp. 431-437]”
“No culto protestante, o centro das atenções não era mais o drama da missa, mas a pregação da Palavra. Os bancos das Igrejas Protestantes foram tipicamente reorganizados para ficar de frente para o púlpito, ao invés do altar. Esta mudança de foco dos objetos religiosos para palavras também afetou uma mudança significativa na consciência religiosa.”
“Ideias e práticas Protestantes, em suma, desempenharam um papel fundamental nesta profunda transição em que, como Lawrence Stone descreveu, ‘A Europa mudou-se decisivamente à partir de uma cultura de imagem para uma cultura de palavra’. Como consequência desta nova concentração em palavras, mais claramente exemplificada na mudança literalista, objetos naturais foram libertados de sua função subsidiária na questão da exegese bíblica, e se tornaram suscetíveis aos novos princípios ordenadores. Estes, como você pode agora imaginar, foram fornecidos pelas nascentes ciências naturais.”
“Dois comentários finais estão em ordem, e eles dizem respeito à diferença que tudo isso fez na nossa compreensão deste notável período da história e da natureza da própria modernidade, por si só. Em primeiro lugar, há uma visão comum de que o literalismo bíblico é inimigo da ciência. Embora a recente manifestação histórica do fundamentalismo empresta a este ponto de vista um certo crédito, e embora seja indubitavelmente verdadeiro que algumas passagem da Escritura, quando interpretadas em seu sentido literal, foram usadas para suprimir opiniões que foram subsequentemente endossadas pela comunidade científica, eu tenha sugerido que o tipo de mentalidade literalística, característica dos primeiros Protestantes modernos, deu origem a uma cosmovisão que proporcionou um ambiente propício para o florescimento das ciências naturais. A este respeito, então, eu juntei essa linha de historiadores que têm avançado a proposição, reconhecidamente arriscada, de que a ciência moderna e, de fato, a modernidade em geral, tem um profundo débito com o Protestantismo. Em segundo lugar, e na sequência a partir deste ponto, também é comumente assumido que a ciência é um dos principais motores da secularização. Porque as explicações científicas substituem as religiosas, pensa-se, a ciência traz um desencantamento do mundo. Do meu ponto de vista, ocorre exatamente o inverso. O desencantamento do mundo foi realizado, em grande parte, pelas tendências dessacralizadoras da religião Protestante. A remoção de significados religiosos do mundo natural estabeleceu as condições que tornaram possível o florescimento das ciências.”