“… Como o tema da predestinação é de certa forma obscuro em si, a curiosidade dos homens o torna muito perigoso, porque o intelecto humano não se pode refrear, nem, por mais limites e termos que se lhe assinalem, deter-se para não se extraviar por caminhos proibidos e elevar-se com o afã, se lhe fosse possível, de não deixar segredo de Deus sem resolver e esquadrinhar… A primeira coisa é que se lembrem de que, quando querem saber os segredos da predestinação, penetram no santuário da sabedoria divina, no qual todo aquele que entra com ousadia não encontra como satisfazer sua curiosidade e mete-se num labirinto do qual não pode sair… Os segredos da sua vontade que determinou nos fossem comunicados, no-los manifestou em sua Palavra...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXI, parágrafo 1)
“'Chegamos ao caminho da fé', diz Agostinho, 'nele permaneçamos constantemente. Ele nos leva até a habitação do Rei, na qual todos os tesouros da ciência e da sabedoria estão escondidos. Porque o Senhor Jesus não tinha inveja dos discípulos que havia exaltado a tão grande dignidade, quando lhes dizia:”Ainda tenho muitas coisas que dizer-vos, mas agora não as podeis ouvir” (João 16:12). É preciso que caminhemos, que aproveitemos, que cresçamos, para que nossos corações sejam capazes daquelas coisas que no presente não podemos entender. E se o último dia nos encontrar aproveitando, lá fora deste mundo aprenderemos o que não pudemos entender aqui.' [Agostinho, In Ioh. Tract. 53, 7 MSL 35, 1777]”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXI, parágrafo 2)
“… Porque a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual nem se deixou de por coisa alguma necessária e útil de conhecer, tampouco se ensina mais do que o é preciso saber… Permitamos ao cristão, portanto, que abra seus ouvidos e seu intelecto a todo raciocínio e às palavras que Deus quis lhe dizer, contanto que o cristão use tal temperança e sobriedade, que, tão logo veja que o Senhor fechou sua boca sagrada, pare ele também e não leve adiante sua curiosidade, fazendo novas perguntas. Tal é o limite da sobriedade que temos de guardar: que, ao aprender, sigamos a Deus, deixando-o falar primeiro; e, se o Senhor deixa de falar, tampouco nós queiramos saber mais ou passar adiante...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXI, parágrafo 3)
“… Jacó e Esaú eram irmãos, gerados de mesmo pai e mesma mãe, e até encerrados no mesmo útero materno antes de nascer. Em todas essas coisas eram iguais; e, no entanto, Deus fez grande diferença entre eles, porque escolheu um e rechaçou o outro. Não existia nenhuma razão para que um fosse preferido ao outro, exceto a primogenitura; mas nem isso se teve em conta, e deu-se ao mais novo o que se negou ao mais velho. Parece que Deus menosprezou a primogenitura em outros casos, a fim de tirar da carne toda ocasião de vangloriar-se; tendo rejeitado a Ismael, Deus pôs seu coração em Isaque; tendo rebaixado Manassés, preferiu Efraim.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXII, parágrafo 5)
“… Jacó é, pois, eleito; e Esaú, rejeitado; e são diferenciados pela predestinação de Deus aqueles entre os quais não existia diferença alguma quanto aos méritos. Se se desejar saber a causa, é a que aponta o apóstolo: que 'foi dito a Moisés: “Terei misericórdia daquele de que eu tenha misericórdia e compadecer-me-ei daquele de quem eu me compadeça” (Romanos 9:15)'. Pergunto eu: que isso significa? Sem dúvida, o Senhor assegura que não existe entre os homens nenhum outro motivo para que lhes outorgue benefícios senão sua pura misericórdia...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXII, parágrafo 6)
“… E, em outro lugar, depois de ter demonstrado que o homem não tem mérito algum antes de sua eleição, [Agostinho] diz: 'Certamente, não tem lugar aqui o vão argumento daqueles que defendem a presciência de Deus contra sua graça, assegurando que fomos eleitos antes da criação do mundo porque Deus soube que seríamos bons, e não porque Ele nos fazia tais. Não fala dessa maneira aquele que diz: “Não me escolhestes a mim, mas eu vos escolhi a vós” (João 15:16). Porque, se Ele nos houvesse escolhido porque sabia que seríamos bons, teria sabido também que nós havíamos de escolhê-lo.' [Agostinho, In Ioh. Tract. 86, 2 MSL 35, 1851]… Por isso, mantém-se verdadeiro o que Agostinho diz em outro lugar, que 'a graça de Deus não encontra aqueles que devem ser eleitos, mas os faz' [Agostinho, Ep. 186, 5, 15 (ad Paulinum) MSL 33, 821; CSEL 57, 17].”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXII, parágrafo 8)
“… Baste, pois, por enquanto que, embora a voz do Evangelho chame a todos em geral, o dom da fé, no entanto, é muito raro. Isaías fornece a causa: que não a todos é manifestado o braço de Deus (Isaías 53:1)… Se perguntarem com que finalidade Deus chama a si aqueles que Ele sabe que não irão, Agostinho responde por mim: 'Queres disputar comigo? Antes maravilha-te comigo e exclama: Ó Alteza! Concordemos ambos no temor, para que não pareçamos no erro' [Agostinho, Serm. 26,12,13 MSL 38, 177]… Eis um grande e secreto conselho, que nos foi revelado: o Senhor sabe quem são os seus; mas Ele não permite que ninguém entenda esse mistério, exceto aqueles que Ele soube de antemão e predestinou como seus (Romanos 8:29) [Bernardus Clarav., Ep. 107, 4 MSL 182, 244]. E pouco depois conclui: 'A misericórdia de Deus para com aqueles que o temem é de eternidade em eternidade: de eternidade pela predestinação, em eternidade pela bem-aventurança; uma não tem princípio, e a outra jamais terá fim' [Bernardus Clarav., Ep. 107, 5 MSL 182, 245]...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXII, parágrafo 10)
“… Porque de tal maneira é a vontade de Deus, a suprema e infalível regra da justiça, que tudo o que ela quer, só pelo fato de querê-lo, deve ser considerado justo. Por isso, quando se pergunta pela causa de que Deus o fez assim, devemos responder: porque quis [Agostinho, De Genesi contra Manichaeos I 2,4 MSL 34, 175]. Pois se se insiste perguntando por que quis, com isso se busca algo superior e mais excelente que a vontade de Deus; o que é impossível de achar. Refreie-se, pois, a temeridade humana, e não busque o que não existe, antes que não ache o que existe. Este, pois, é um freio excelente para reter a todos aqueles que queiram meditar com reverência os segredos de Deus… Não imaginamos um Deus sem lei, uma vez que Ele é sua própria lei; pois, como diz Platão, os homens, por estar sujeitos aos maus desejos, têm necessidade da lei; mas a vontade de Deus, que não somente é pura e está limpa de todo vício, mas que além disso é a regra suprema da perfeição, é a lei de todas as leis...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 2)
“Venha, pois, agora, algum maniqueu ou celestino e calunie a providência de Deus. Eu afirmo, como Paulo, que não devemos dar razão dela, pois, com sua grandeza, sobrepuja nossa capacidade. Por que maravilhar-se? Que há de estranho nisso? Pretenderão que a potência de Deus seja limitada de tal maneira que não possa fazer mais do que nosso intelecto possa compreender?… Porque quem sois vós, pobres e míseros homens, para formular artigos contra Deus e acusá-lo pelo único motivo de que não se presta a rebaixar a grandeza de suas obras de acordo com vossa rudeza e pouca capacidade? Como se as obras e Deus fossem más, porque a carne não as compreende!…
… [Agostinho] diz: 'tu, homem, esperas minha resposta, mas eu também sou homem como tu. Portanto, ouçamos ambos ao que nos diz: ó homem, que és? [Agostinho, Serm., 28 c.3, 4 MSL 37, 179]... É melhor uma ignorância fiel que uma ciência temerária [Ibidem, c.6, 6 MSL 37, 181]... Busca méritos; não acharás senão castigos. Ó profundidade! Pedro nega a Cristo; o ladrão crê nele. Ó profundidade! Desejas saber a razão? Eu me sentirei sobrepujado por tanta alteza. Raciocina tu quanto quiseres; eu me maravilharei; disputa tu; eu crerei. Vejo a alteza; à profundidade não chego. Paulo deu-se por satisfeito em admirar. Ele afirma que os desígnios de Deus são inescrutáveis. E tu vais esquadrinhá-los? Ele diz que os caminhos de Deus não se podem investigar, e tu os queres conhecer? [Agostinho, Serm., 28 c.7, 7 MSL 37, 182]'”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 5)
“… E não há de parecer absurda minha afirmação de que Deus não somente previu a queda do primeiro homem e com ela a ruína de toda a sua posteridade, mas que assim o ordenou. Porque assim como pertence a sua sabedoria saber tudo o que há de acontecer antes que ocorra, assim também pertence à sua potência reger e governar com sua mão todas as coisas. Agostinho trata desta questão muito bem e, como todas as demais, a resolve muito atinadamente, dizendo: 'saudavelmente confessamos o que retissimamente cremos, que Deus, que é Senhor de todas as coisas, e que a todas criou boas, e previu que o mal surgiria do bom, e soube que a sua onipotente bondade lhe convinha mais converter o mal em bem do que não permitir que o mal existisse, ordenou de tal maneira a vida dos anjos e dos homens que primeiro quis mostrar as forças do livre-arbítrio, e depois o que podia o benefício de sua graça e justo juízo'.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 7)
“… Ademais, sua perdição de tal maneira depende da predestinação de Deus que ao mesmo tempo há de haver neles causa e matéria dela. O primeiro homem caiu porque assim Deus o havia ordenado; mas por que foi ordenado, não o sabemos. Mas sabemos com certeza que Ele o ordenou assim porque via que com isso seu Nome seria glorificado. Ao ouvir falar de glória, pensemos ao mesmo tempo em sua justiça; pois é necessário que seja justo o que é digno de ser louvado. Cai, pois, o homem, quando assim o ordena a providência de Deus; mas cai por sua culpa. Pouco antes havia declarado o Senhor que tudo quanto havia feito era 'bom em grande maneira' (Gênesis 1:31). De onde, pois, lhe veio ao homem aquela maldade pela qual se afastou de seu Deus? Para que não pensasse que lhe vinha de sua criação, o Senhor, com seu próprio testemunho, havia aprovado tudo quanto havia posto nele. O homem, pois, é quem por sua própria malícia corrompeu a boa natureza que havia recebido de Deus; e, com sua queda, trouxe a ruína a toda a sua posteridade. Por isso, contemplemos antes na natureza corrompida dos homens a causa de sua condenação, que é de todo evidente, em vez de buscá-la na predestinação de Deus, na que está oculta e que é de todo incompreensível. E não levemos a mal submeter nosso intelecto à imensa sabedoria de Deus, e que se lhe submeta em muitos segredos. Porque nas coisas não-lícitas e que não é possível saber, a ignorância é sabedoria e o desejo de sabê-las, uma espécie de loucura.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 8)
“… [Agostinho]: 'que Deus dê àqueles que reprovou o castigo que merecem, e aos que escolheu, a graça que não merecem, se pode mostrar que é justo e irrepreensível pelo exemplo de um credor, ao qual lhe é lícito perdoar a dívida de um e exigi-la de outro' [Pseudo-Aug., De praedestinatione et gratia c.3 MSL 15, 1667]. Assim, o Senhor pode muito bem dar sua graça aos que queira, porque é misericordioso; e não a dar a todos, porque é juiz justo. 'Em dar a uns a graça que não merecem, mostra sua graça gratuita; e, ao não a dar a todos, mostra o que todos merecem' [Agostinho, De dono perseverantiae 12, 28 MSL 45, 1009s]”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 11)
“… [Agostinho]: '… Antes, aconteça o que acontecer, deve-se pregar, para que aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça. E quem os tem, se não os recebeu daquele que promete dá-los? Assim, pois, aquele que não recebeu tal dom, que rejeite a boa doutrina, contanto que aquele que o recebeu tome e beba, beba e viva. Porque, sendo necessário pregar as boas obras para que Deus seja servido como convém, também se deve pregar a predestinação, para que aquele que tem ouvidos se glorie da graça de Deus em Deus, e não em si mesmo' [Agostinho, De dono perseverantiae, 20, 51 col. 1025].”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 13)
“Como este santo homem [se referindo a Agostinho] tinha um singular zelo e desejo de edificar as almas, tem o cuidado, entretanto, de moderar a maneira de ensinar a verdade, de tal forma que se guarda com grande prudência na medida do possível, para não escandalizar ninguém; pois nota que a verdade se pode dizer também com grande proveito. Se alguém falasse ao povo desta maneira: se não crerdes, é porque Deus vos predestinou já p ara condenar-vos; este não só alimentaria a negligência, mas também a malícia. E se alguém fosse além e dissesse a seus ouvintes que nem no futuro haveriam de crer por estar já reprovados, isto seria imprecação, em vez de doutrina… E pouco depois [Agostinho]: 'quando os homens, por meio da correção, voltam ao caminho da justiça, quem é que obra a salvação em seus corações, senão Aquele que dá o crescimento, seja um ou outro o que plante e o que regue? Quando a Deus lhe apraz salvar um homem, não há livre-arbítrio de homem que lho impeça e resista' [Agostinho, De correptione et gratia 5, 8 MSL 44, 920]… E também [Agostinho]: 'quando Ele quer atrair os homens, acaso os ata com ligaduras corporais? Age interiormente; interiormente retém os corações; interiormente move os corações e atrai os homens com a vontade que formou neles' [Ibidem, 14, 45, col. 944]…
… Sobretudo, não se pode omitir de maneira nenhuma o que [Agostinho] acrescenta em seguida: 'que como nós não sabemos quem são os que pertencem ou deixam de pertencer ao número e companhia dos predestinados, devemos ter tal afeto que desejemos que todos se salvem; e, assim, procuraremos fazer todos aqueles que encontrarmos partícipes de nossa paz. No mais, nossa paz não repousará senão nos que são filhos da paz' [Ibidem, 15, 46, col. 944s]...
… Em conclusão: nosso dever é usar, tanto quanto nos for possível, de uma correção saudável e severa, à maneira de medicina; e isto para com todos, a fim de que não se percam e não percam os outros; mas a Deus lhe corresponde fazer que nossa correção aproveite àqueles que Ele predestinou.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 14)
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXI, parágrafo 1)
“'Chegamos ao caminho da fé', diz Agostinho, 'nele permaneçamos constantemente. Ele nos leva até a habitação do Rei, na qual todos os tesouros da ciência e da sabedoria estão escondidos. Porque o Senhor Jesus não tinha inveja dos discípulos que havia exaltado a tão grande dignidade, quando lhes dizia:”Ainda tenho muitas coisas que dizer-vos, mas agora não as podeis ouvir” (João 16:12). É preciso que caminhemos, que aproveitemos, que cresçamos, para que nossos corações sejam capazes daquelas coisas que no presente não podemos entender. E se o último dia nos encontrar aproveitando, lá fora deste mundo aprenderemos o que não pudemos entender aqui.' [Agostinho, In Ioh. Tract. 53, 7 MSL 35, 1777]”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXI, parágrafo 2)
“… Porque a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual nem se deixou de por coisa alguma necessária e útil de conhecer, tampouco se ensina mais do que o é preciso saber… Permitamos ao cristão, portanto, que abra seus ouvidos e seu intelecto a todo raciocínio e às palavras que Deus quis lhe dizer, contanto que o cristão use tal temperança e sobriedade, que, tão logo veja que o Senhor fechou sua boca sagrada, pare ele também e não leve adiante sua curiosidade, fazendo novas perguntas. Tal é o limite da sobriedade que temos de guardar: que, ao aprender, sigamos a Deus, deixando-o falar primeiro; e, se o Senhor deixa de falar, tampouco nós queiramos saber mais ou passar adiante...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXI, parágrafo 3)
“… Jacó e Esaú eram irmãos, gerados de mesmo pai e mesma mãe, e até encerrados no mesmo útero materno antes de nascer. Em todas essas coisas eram iguais; e, no entanto, Deus fez grande diferença entre eles, porque escolheu um e rechaçou o outro. Não existia nenhuma razão para que um fosse preferido ao outro, exceto a primogenitura; mas nem isso se teve em conta, e deu-se ao mais novo o que se negou ao mais velho. Parece que Deus menosprezou a primogenitura em outros casos, a fim de tirar da carne toda ocasião de vangloriar-se; tendo rejeitado a Ismael, Deus pôs seu coração em Isaque; tendo rebaixado Manassés, preferiu Efraim.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXII, parágrafo 5)
“… Jacó é, pois, eleito; e Esaú, rejeitado; e são diferenciados pela predestinação de Deus aqueles entre os quais não existia diferença alguma quanto aos méritos. Se se desejar saber a causa, é a que aponta o apóstolo: que 'foi dito a Moisés: “Terei misericórdia daquele de que eu tenha misericórdia e compadecer-me-ei daquele de quem eu me compadeça” (Romanos 9:15)'. Pergunto eu: que isso significa? Sem dúvida, o Senhor assegura que não existe entre os homens nenhum outro motivo para que lhes outorgue benefícios senão sua pura misericórdia...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXII, parágrafo 6)
“… E, em outro lugar, depois de ter demonstrado que o homem não tem mérito algum antes de sua eleição, [Agostinho] diz: 'Certamente, não tem lugar aqui o vão argumento daqueles que defendem a presciência de Deus contra sua graça, assegurando que fomos eleitos antes da criação do mundo porque Deus soube que seríamos bons, e não porque Ele nos fazia tais. Não fala dessa maneira aquele que diz: “Não me escolhestes a mim, mas eu vos escolhi a vós” (João 15:16). Porque, se Ele nos houvesse escolhido porque sabia que seríamos bons, teria sabido também que nós havíamos de escolhê-lo.' [Agostinho, In Ioh. Tract. 86, 2 MSL 35, 1851]… Por isso, mantém-se verdadeiro o que Agostinho diz em outro lugar, que 'a graça de Deus não encontra aqueles que devem ser eleitos, mas os faz' [Agostinho, Ep. 186, 5, 15 (ad Paulinum) MSL 33, 821; CSEL 57, 17].”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXII, parágrafo 8)
“… Baste, pois, por enquanto que, embora a voz do Evangelho chame a todos em geral, o dom da fé, no entanto, é muito raro. Isaías fornece a causa: que não a todos é manifestado o braço de Deus (Isaías 53:1)… Se perguntarem com que finalidade Deus chama a si aqueles que Ele sabe que não irão, Agostinho responde por mim: 'Queres disputar comigo? Antes maravilha-te comigo e exclama: Ó Alteza! Concordemos ambos no temor, para que não pareçamos no erro' [Agostinho, Serm. 26,12,13 MSL 38, 177]… Eis um grande e secreto conselho, que nos foi revelado: o Senhor sabe quem são os seus; mas Ele não permite que ninguém entenda esse mistério, exceto aqueles que Ele soube de antemão e predestinou como seus (Romanos 8:29) [Bernardus Clarav., Ep. 107, 4 MSL 182, 244]. E pouco depois conclui: 'A misericórdia de Deus para com aqueles que o temem é de eternidade em eternidade: de eternidade pela predestinação, em eternidade pela bem-aventurança; uma não tem princípio, e a outra jamais terá fim' [Bernardus Clarav., Ep. 107, 5 MSL 182, 245]...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXII, parágrafo 10)
“… Porque de tal maneira é a vontade de Deus, a suprema e infalível regra da justiça, que tudo o que ela quer, só pelo fato de querê-lo, deve ser considerado justo. Por isso, quando se pergunta pela causa de que Deus o fez assim, devemos responder: porque quis [Agostinho, De Genesi contra Manichaeos I 2,4 MSL 34, 175]. Pois se se insiste perguntando por que quis, com isso se busca algo superior e mais excelente que a vontade de Deus; o que é impossível de achar. Refreie-se, pois, a temeridade humana, e não busque o que não existe, antes que não ache o que existe. Este, pois, é um freio excelente para reter a todos aqueles que queiram meditar com reverência os segredos de Deus… Não imaginamos um Deus sem lei, uma vez que Ele é sua própria lei; pois, como diz Platão, os homens, por estar sujeitos aos maus desejos, têm necessidade da lei; mas a vontade de Deus, que não somente é pura e está limpa de todo vício, mas que além disso é a regra suprema da perfeição, é a lei de todas as leis...”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 2)
“Venha, pois, agora, algum maniqueu ou celestino e calunie a providência de Deus. Eu afirmo, como Paulo, que não devemos dar razão dela, pois, com sua grandeza, sobrepuja nossa capacidade. Por que maravilhar-se? Que há de estranho nisso? Pretenderão que a potência de Deus seja limitada de tal maneira que não possa fazer mais do que nosso intelecto possa compreender?… Porque quem sois vós, pobres e míseros homens, para formular artigos contra Deus e acusá-lo pelo único motivo de que não se presta a rebaixar a grandeza de suas obras de acordo com vossa rudeza e pouca capacidade? Como se as obras e Deus fossem más, porque a carne não as compreende!…
… [Agostinho] diz: 'tu, homem, esperas minha resposta, mas eu também sou homem como tu. Portanto, ouçamos ambos ao que nos diz: ó homem, que és? [Agostinho, Serm., 28 c.3, 4 MSL 37, 179]... É melhor uma ignorância fiel que uma ciência temerária [Ibidem, c.6, 6 MSL 37, 181]... Busca méritos; não acharás senão castigos. Ó profundidade! Pedro nega a Cristo; o ladrão crê nele. Ó profundidade! Desejas saber a razão? Eu me sentirei sobrepujado por tanta alteza. Raciocina tu quanto quiseres; eu me maravilharei; disputa tu; eu crerei. Vejo a alteza; à profundidade não chego. Paulo deu-se por satisfeito em admirar. Ele afirma que os desígnios de Deus são inescrutáveis. E tu vais esquadrinhá-los? Ele diz que os caminhos de Deus não se podem investigar, e tu os queres conhecer? [Agostinho, Serm., 28 c.7, 7 MSL 37, 182]'”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 5)
“… E não há de parecer absurda minha afirmação de que Deus não somente previu a queda do primeiro homem e com ela a ruína de toda a sua posteridade, mas que assim o ordenou. Porque assim como pertence a sua sabedoria saber tudo o que há de acontecer antes que ocorra, assim também pertence à sua potência reger e governar com sua mão todas as coisas. Agostinho trata desta questão muito bem e, como todas as demais, a resolve muito atinadamente, dizendo: 'saudavelmente confessamos o que retissimamente cremos, que Deus, que é Senhor de todas as coisas, e que a todas criou boas, e previu que o mal surgiria do bom, e soube que a sua onipotente bondade lhe convinha mais converter o mal em bem do que não permitir que o mal existisse, ordenou de tal maneira a vida dos anjos e dos homens que primeiro quis mostrar as forças do livre-arbítrio, e depois o que podia o benefício de sua graça e justo juízo'.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 7)
“… Ademais, sua perdição de tal maneira depende da predestinação de Deus que ao mesmo tempo há de haver neles causa e matéria dela. O primeiro homem caiu porque assim Deus o havia ordenado; mas por que foi ordenado, não o sabemos. Mas sabemos com certeza que Ele o ordenou assim porque via que com isso seu Nome seria glorificado. Ao ouvir falar de glória, pensemos ao mesmo tempo em sua justiça; pois é necessário que seja justo o que é digno de ser louvado. Cai, pois, o homem, quando assim o ordena a providência de Deus; mas cai por sua culpa. Pouco antes havia declarado o Senhor que tudo quanto havia feito era 'bom em grande maneira' (Gênesis 1:31). De onde, pois, lhe veio ao homem aquela maldade pela qual se afastou de seu Deus? Para que não pensasse que lhe vinha de sua criação, o Senhor, com seu próprio testemunho, havia aprovado tudo quanto havia posto nele. O homem, pois, é quem por sua própria malícia corrompeu a boa natureza que havia recebido de Deus; e, com sua queda, trouxe a ruína a toda a sua posteridade. Por isso, contemplemos antes na natureza corrompida dos homens a causa de sua condenação, que é de todo evidente, em vez de buscá-la na predestinação de Deus, na que está oculta e que é de todo incompreensível. E não levemos a mal submeter nosso intelecto à imensa sabedoria de Deus, e que se lhe submeta em muitos segredos. Porque nas coisas não-lícitas e que não é possível saber, a ignorância é sabedoria e o desejo de sabê-las, uma espécie de loucura.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 8)
“… [Agostinho]: 'que Deus dê àqueles que reprovou o castigo que merecem, e aos que escolheu, a graça que não merecem, se pode mostrar que é justo e irrepreensível pelo exemplo de um credor, ao qual lhe é lícito perdoar a dívida de um e exigi-la de outro' [Pseudo-Aug., De praedestinatione et gratia c.3 MSL 15, 1667]. Assim, o Senhor pode muito bem dar sua graça aos que queira, porque é misericordioso; e não a dar a todos, porque é juiz justo. 'Em dar a uns a graça que não merecem, mostra sua graça gratuita; e, ao não a dar a todos, mostra o que todos merecem' [Agostinho, De dono perseverantiae 12, 28 MSL 45, 1009s]”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 11)
“… [Agostinho]: '… Antes, aconteça o que acontecer, deve-se pregar, para que aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça. E quem os tem, se não os recebeu daquele que promete dá-los? Assim, pois, aquele que não recebeu tal dom, que rejeite a boa doutrina, contanto que aquele que o recebeu tome e beba, beba e viva. Porque, sendo necessário pregar as boas obras para que Deus seja servido como convém, também se deve pregar a predestinação, para que aquele que tem ouvidos se glorie da graça de Deus em Deus, e não em si mesmo' [Agostinho, De dono perseverantiae, 20, 51 col. 1025].”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 13)
“Como este santo homem [se referindo a Agostinho] tinha um singular zelo e desejo de edificar as almas, tem o cuidado, entretanto, de moderar a maneira de ensinar a verdade, de tal forma que se guarda com grande prudência na medida do possível, para não escandalizar ninguém; pois nota que a verdade se pode dizer também com grande proveito. Se alguém falasse ao povo desta maneira: se não crerdes, é porque Deus vos predestinou já p ara condenar-vos; este não só alimentaria a negligência, mas também a malícia. E se alguém fosse além e dissesse a seus ouvintes que nem no futuro haveriam de crer por estar já reprovados, isto seria imprecação, em vez de doutrina… E pouco depois [Agostinho]: 'quando os homens, por meio da correção, voltam ao caminho da justiça, quem é que obra a salvação em seus corações, senão Aquele que dá o crescimento, seja um ou outro o que plante e o que regue? Quando a Deus lhe apraz salvar um homem, não há livre-arbítrio de homem que lho impeça e resista' [Agostinho, De correptione et gratia 5, 8 MSL 44, 920]… E também [Agostinho]: 'quando Ele quer atrair os homens, acaso os ata com ligaduras corporais? Age interiormente; interiormente retém os corações; interiormente move os corações e atrai os homens com a vontade que formou neles' [Ibidem, 14, 45, col. 944]…
… Sobretudo, não se pode omitir de maneira nenhuma o que [Agostinho] acrescenta em seguida: 'que como nós não sabemos quem são os que pertencem ou deixam de pertencer ao número e companhia dos predestinados, devemos ter tal afeto que desejemos que todos se salvem; e, assim, procuraremos fazer todos aqueles que encontrarmos partícipes de nossa paz. No mais, nossa paz não repousará senão nos que são filhos da paz' [Ibidem, 15, 46, col. 944s]...
… Em conclusão: nosso dever é usar, tanto quanto nos for possível, de uma correção saudável e severa, à maneira de medicina; e isto para com todos, a fim de que não se percam e não percam os outros; mas a Deus lhe corresponde fazer que nossa correção aproveite àqueles que Ele predestinou.”
(João Calvino, Livro 3, Capítulo XXIII, parágrafo 14)