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04 junho 2025

Livro: "Confissões" [VIII e IX]

Alguns trechos dos livros VIII e IX de "Confissões", de Agostinho de Hipona, particularmente os trechos que relatam o estágio definitivo da sua conversão, destacando-se a magnífica providência de Deus ao usar amigos [Alípio, Nebrídio, Verecundo] que estavam ao seu redor, ou que faziam parte da sua vida, além de sua mãe [Mônica], que se alegrou pela conversão de Agostinho:

'Depois, nesse renhido combate interior, que eu havia travado com minha alma, no quarto do meu coração, com a angústia estampada na cara, fui procurar Alípio. “O que nos aflige?”, exclamei. “O que é isso? Que foi que você ouviu? Os incultos se insurgem e ‘o Reino dos céus é tomado à força’ (Mt 11.12), e nós, com toda a nossa erudição e o coração vazio, chafurdamos na carne e no sangue. Será que temos vergonha de ir adiante porque outros nos precederam, e não temos vergonha de não fazer absolutamente nada?”. Proferi algumas palavras nesse sentido, e minha mente febril afastou-me de Alípio, que ficou em silêncio olhando-me assustado. Não era meu hábito usar aquele tom. Minha testa, as bochechas, os olhos, a cor e o tom da voz expressavam meu pensamento mais que as palavras. Nosso alojamento tinha um pequeno jardim que podíamos usar como todo o resto da casa, pois o dono dela, nosso anfitrião, não morava lá. Para aquele jardim fugi às pressas levado pelo tumulto que me oprimia o peito. Ali ninguém podia entravar a acalorada disputa que eu travava comigo mesmo, até que ela terminasse como tu sabias que terminaria, mas eu não. Eu só sabia que estava salutarmente perturbado, morrendo para viver. Sabia o que de mal havia em mim, mas não sabia o que de bom estava prestes a me acontecer. Fui para o jardim, e Alípio me seguiu. A presença dele não diminuiria minha privacidade, e ele não poderia me abandonar quando eu estava tão perturbado. Sentamo-nos no ponto mais distante da casa. Meu espírito estava perturbado.' [Confissões VIII.19]

'Doente na alma e atormentado estava eu, e me acusava mais duramente do que de costume, debatendo-me até romper todas as amarras que, embora já fracas, ainda me prendiam. E tu, ó Senhor, com tua rigorosa misericórdia, me pressionavas no fundo da alma, redobrando as chicotadas do medo e da vergonha para que eu não desistisse, e assim aquela tênue amarra que sobrava recuperasse sua resistência e me prendesse ainda mais.' [Confissões VIII.25]

'29. Assim eu falava e chorava, no mais amargo sentimento de contrição, quando eis que, de repente, provindo de uma casa na vizinhança, ouço uma voz, como a de um menino ou menina, não sei, cantando e repetindo muitas vezes: “Pegue e leia. Pegue e leia. Imediatamente meu rosto se alterou, e eu comecei a pensar, concentrando-me ao máximo, se as crianças costumavam, em alguma de suas brincadeiras, cantar aquelas palavras. Não consegui lembrar-me de ter jamais ouvido algo semelhante. Então, controlando a torrente de lágrimas, levantei-me, interpretando aquilo como nada menos do que uma ordem de Deus, de abrir o livro e ler a primeira passagem que descobrisse ao acaso. Eu, na verdade, tinha ouvido dizer sobre Antão que, entrando na igreja durante a leitura do Evangelho, havia recebido o seguinte conselho, como se estivesse sendo lido e dirigido a ele pessoalmente: “Vá, venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro nos céus. Depois, venha e siga-me” (Mt 19.21). Ao receber essa orientação, ele imediatamente se converteu a ti. Voltei ansioso para o local onde Alípio estava sentado, pois lá havia deixado o volume do apóstolo. Peguei-o, abri e li em silêncio a primeira passagem que caiu sob meu olhar:Não em orgias e bebedeiras, não em imoralidade sexual e depravação, não em desavença e inveja. Ao contrário, revistam-se do Senhor Jesus Cristo, e não fiquem premeditando como satisfazer os desejos da carne” (Rm 13.13-14). Não precisei continuar a leitura, nem era necessário: imediatamente, ao final dessa frase, como se eu tivesse sido exposto a uma luz serena que invadia meu coração, todas as negras sombras da dúvida desapareceram
30. Em seguida, fechei o livro usando um dedo ou outra coisa qualquer para marcar a página, e calmamente revelei a Alípio o que havia lido. O que aconteceu no seu íntimo, sem que eu o soubesse, ele me mostrou. Pediu-me para ler o que eu havia lido, e eu lhe mostrei. Ele leu e prosseguiu na leitura, e eu não sabia o que vinha em seguida. Era isto: “Aceitem o que é fraco na fé” (Rm 14.1), que ele aplicou a si mesmo e o revelou a mim. E com esse conselho ele se fortaleceu. Com boa resolução e propósito, correspondendo ao máximo ao seu caráter, que sempre foi muito diferente e melhor do que o meu, sem nenhum turbulento adiamento, juntou-se a mim. Em seguida, fomos procurar minha mãe [Mônica]. Contamos-lhe o que acontecera. Ela se rejubilou. Relatamos em que ordem os fatos se sucederam. Ela exultou triunfante e bendizendo a ti...' [Confissões VIII.29-30]

'Verecundo ficou seriamente perturbado com minha felicidade. Preso a vínculos inflexíveis, ele viu que deveria separar-se de mim. Ele mesmo não era cristão, mas sua mulher o era. No entanto, com mais firmeza do que qualquer outra cadeia, ele estava preso e impedido de empreender a viagem que eu agora iniciava. Pois, como ele [Verecundo] mesmo declarou, não se tornaria cristão em nenhuma outra situação que não fosse aquela para ele então impossível. Todavia, generosamente, ele nos ofereceu sua casa de campo, enquanto ficássemos por lá. Tu, ó Senhor, o recompensarás “na ressurreição dos justos” (Lc 14.14), vendo que já lhe deste o quinhão dos justos. Pois, quando eu já estava ausente, em Roma, ele foi acometido de uma enfermidade física, durante a qual se fez cristão, um de teus fiéis, e depois deixou esta vida.Deus teve misericórdia dele, e não somente dele, mas também de mim” (Fp 2.27), evitando que a lembrança da extrema bondade de meu amigo, sem poder vê-lo participando do teu rebanho, fosse para mim uma tortura intolerável. Graças a ti, meu Deus, nós somos teus. Tuas sugestões e teu consolo nos dizem que tu, fiel em tuas promessas, agora recompensas Verecundo pela casa de campo de Cassicíaco que ele nos cedeu para repousarmos em ti, longe da febre deste mundo, com o eterno frescor do teu paraíso. Pois tu lhe perdoaste os pecados cometidos neste mundo lá naquela dadivosa montanha, a montanha onde flui leite, a tua montanha...' [Confissões IX.5]

'Naquela época Verecundo sofria, mas Nebrídio se alegrava. Pois embora ele [Nebrídio] também, não sendo ainda cristão, houvesse caído naquele abismo do mais pernicioso erro que o levava a crer que o corpo de teu Filho era um fantasma, agora emergia dele adotando a mesma crença que nós. Mesmo que ainda não fosse iniciado nos sacramentos da tua Igreja, ele era o mais ardente perseguidor da verdade. Logo após nossa conversão e regeneração pelo teu batismo, Nebrídio tornou-se um membro fiel da Igreja [...] e, servindo-te em perfeita castidade e continência entre sua gente na África, promoveu a conversão de toda a sua família; em seguida, foi libertado por ti de seu corpo e agora vive no seio de Abraão. O que quer que esse seio signifique, lá está Nebrídio, meu caro amigo e teu filho, ó Senhor, antes liberto, agora adotivo. Lá está ele. Pois que outro lugar existe para uma alma assim? Naquele lugar está ele sobre o qual tantas perguntas dirigiu a mim, pobre ser humano inexperiente. Agora ele não mais aproxima seus ouvidos de minha boca, mas achega sua boca espiritual à tua Fonte, bebendo sabedoria no grau máximo possível de acordo com sua sede, infinitamente feliz. Mas não acho que essa fonte de sabedoria o deixe tão inebriado a ponto de ele se esquecer de mim, sabendo que tu, Senhor, que és sua bebida, te preocupas conosco. Assim, lá estava eu então consolando Verecundo, que, sem perder a amizade, lamentava que minha conversão tivesse aquelas consequências. Eu o aconselhei a aceitar a fé, respeitando sua condição de homem casado; e esperava que Nebrídio seguisse meus passos, o que ele estava muito prestes a fazer. E assim, de repente, aqueles dias finalmente se foram.' [Confissões IX.6]

'7. Chegou o dia em que eu, de fato, me livraria do cargo de professor de retórica, do qual mentalmente já me livrara. E aconteceu. Tu resgataste minha língua de onde já havias resgatado o coração. Eu te agradeci em júbilo, e me retirei com toda a minha família para a casa de campo [Cassicíaco]. O que lá realizei em matéria de textos escritos, agora que estava registrado a teu serviço (embora, nesse intervalo, minha respiração ainda fosse ofegante devido aos esforços feitos na escola do orgulho), é atestado por meus livros, bem como pelos debates travados com outros ou comigo mesmo diante de ti. Prova disso são minhas cartas a Nebrídio, que na época estava ausente. E quando terei tempo para relatar os grandes benefícios que recebemos naquela época, especialmente agora quando corro em direção a graças mais importantes? Guardo na memória, e para mim é agradável, ó Senhor, confessar a ti com que estímulos interiores tu me subjugaste; e como tu me tornaste humilde, “aplanando montes e colinas” de ambiciosos sonhos (Is 40.4), fazendo “veredas retas” e “nivelando estradas acidentadas” (Lc 3.4-5); e como tu subjugaste também Alípio, meu irmão de coração, que aceitou o nome de teu Unigênito, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, nome que antes ele não queria ver incluído em nossos escritos. Ele então preferia que estes tivessem o cheiro dos altaneiros cedros das escolas, já despedaçados pelo Senhor, e não o aroma das ervas sadias da Igreja, o antídoto contra serpentes. 
8. Ah, com que clamores eu falava contigo, meu Deus, quando lia os salmos de Davi, aqueles piedosos poemas e cantos de devoção, que não dão margem alguma para o orgulho! Eu ainda era um catecúmeno, um noviço no teu verdadeiro amor. Repousava naquela casa de campo [Cassicíaco] junto com Alípio, outro catecúmeno. Minha mãe [Mônica] sempre estava junto a nós, em trajes de mulher, mas com sua fé viril, com aquela paz tranquila da idade e a plenitude do amor materno e da piedade cristã. Ah, que clamores eu dirigia a ti naqueles salmos! Como eles me inflamavam e me incutiam ardentes desejos de cantá-los, se possível, pelo mundo inteiro, contra o orgulho da humanidade. Todavia, no mundo inteiro eles são cantados, e “nada escapa ao seu calor” (Sl 19.6). Com que potentes e amargos lamentos eu me indignava contra os maniqueístas! E ao mesmo tempo sentia pena deles [compaixão/misericórdia]. Não conheciam os sacramentos, os verdadeiros remédios, e esbravejavam como loucos contra o antídoto que poderia curá-los de sua loucura.' [Confissões IX.7-8]

'23. Aproximando-se agora o dia de sua [Mônica] partida deste mundo (o dia que tu conhecias, nós não), creio que por determinação de teus secretos desígnios que assim o quiseram, aconteceu que ela e eu estávamos a sós, debruçados a uma janela que se abria para o jardim da casa onde nos hospedávamos em Óstia. Ali, longe das multidões, nos refazíamos do cansaço de uma longa jornada, preparando-nos para seguir viagem. Numa conversa a sós, muito agradável, esquecendo-nos “das coisas que ficaram para trás e avançando para as que estão adiante” (Fp 3.13), discutíamos na presença da Verdade, que és tu, como é a vida eterna dos santos, que “olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou” (1Co 2.9). Muito se abria a boca de nosso coração, querendo beber da água corrente de tua fonte, “a fonte da vida” (Sl 36.9), que és tu. Queríamos ser aspergidos segundo nossa capacidade com algum poder especial para podermos meditar sobre um mistério tão grande
24. Depois nossa conversa atingiu um nível tão elevado que nem mesmo o maior prazer dos sentidos físicos, naquela luz pura, cotejada com a doçura daquela vida por vir parecia não merecer comparação nem sequer menção. Transportados por um sentimento superior, elevamo-nos até a essência do ser, ultrapassando aos poucos todas as coisas físicas, atingindo até o próprio céu, de onde nos chega o brilho da lua, do sol e das estrelas. Sim, pairávamos ainda mais alto em nossa meditação, conversa e admiração de tuas obras. E chegamos à nossa mente e a ultrapassamos, para que pudéssemos atingir aquela região da inesgotável abundância, onde tu apascentas Israel com o alimento da verdade, onde a vida é “a Sabedoria, artífice do mundo” (Sb 7.21, BJ) e do que existiu e do que existirá.' [Confissões IX.23-24]

'26. Essas coisas eu ia dizendo, embora não exatamente desse jeito e com essas mesmas palavras. Mas tu sabes, Senhor, que naquele dia quando falávamos disso, e este mundo com todas as suas delícias tornou-se, durante a conversa, desprezível aos nossos olhos, minha mãe [Mônica] disse: “Filho, de minha parte já não tenho nenhum prazer nesta vida. Não sei por que ainda continuo aqui, agora que minhas esperanças neste mundo foram satisfeitas. Havia uma coisa que me fazia querer ficar por mais um tempo nesta vida: poder ver você como cristão [...] antes de minha morte. Meu Deus me concedeu essa graça e do modo mais que generoso, pois agora vejo você desprezando a felicidade terrena, transformando-se num servo dele. O que estou fazendo aqui?”. 
27. Não me lembro que resposta eu dei a essas coisas que ela [Mônica] disse. Pois não mais que cinco dias após isso, ela contraiu uma febre muito alta. Durante a enfermidade, perdeu a consciência e, por um breve espaço de tempo, afastou-se deste mundo visível. Reunimo-nos às pressas a seu redor. Ela recuperou os sentidos. Olhando para mim e meu irmão junto a ela, perguntou-nos: “Onde estava eu?”. E depois, fitando-nos, impressionada com nosso silêncio, disse: “Aqui vocês devem enterrar sua mãe”. Mantive meu silêncio e parei de chorar. Mas meu irmão disse alguma coisa, desejando-lhe uma sorte melhor: que ela não viesse a morrer numa terra estranha, mas sim em seu próprio país. Ao que ela, com expressão ansiosa, fixando nele seus olhos, pois ele ainda valorizava essas coisas, e depois olhando para mim, disse: “Veja só o que ele diz!”. E logo em seguida, dirigiu-se a nós dois: “Enterrem este corpo em qualquer lugar. Que isso não seja de modo algum motivo de preocupação para vocês [...]”. Depois de expressar esse desejo com as palavras que conseguiu proferir, ela se calou, sentindo o recrudescimento da dor da enfermidade.' [Confissões IX.26-27]

'[...] Também ouvi contar mais tarde que, quando já estávamos em Óstia, um dia, durante minha ausência, com confiança maternal ela [Mônica] conversou com alguns amigos sobre seu desprezo por esta vida e sobre a bênção da morte. Quando eles, assombrados com essa coragem que tu havias concedido a uma mulher, perguntaram se não tinha medo de deixar seu corpo tão longe de sua cidade natal, ela respondeu: “Nada se situa longe de Deus. E não se deve temer que no fim do mundo ele não consiga reconhecer de onde nos deve ressuscitar”. No nono dia de sua enfermidade, aos 56 anos de vida, quando eu tinha 33, aquela alma santa e religiosa foi libertada de seu corpo.' [Confissões IX.28]

'[...] Deitado sozinho em meu leito, lembrei-me da verdade daqueles versos do teu Ambrósio. Pois tu és:
O Criador de todas as coisas, o Senhor, 
O Soberano das alturas 
Que, vestindo o dia de luz, derramaste 
Uma suave sonolência sobre a noite, 
Para que em nossos membros a força 
Do trabalho fosse renovada, 
E reanimados fossem os corações desalentados e abatidos, 
E as tristezas fossem suavizadas.
[Confissões IX.32]

'[...] Dei vazão às lágrimas antes reprimidas: podiam agora extravasar à vontade. Nelas repousou meu coração; nelas ele encontrou descanso, pois quem as ouvia eram teus ouvidos, não os ouvidos dos homens, que teriam interpretado meu choro com desdém. E agora, Senhor, a ti o confesso por escrito. Que leia isso quem quiser e como quiser. Se alguém encontra pecado nisso, no fato de eu chorar a morte de minha mãe [Mônica] por uma pequena fração de uma hora (a mãe que por um breve espaço de tempo esteve morta a meus olhos, aquela que por muitos anos chorou por mim para que eu vivesse aos teus olhos), que essa pessoa chore por meus pecados diante de ti, o Pai de todos os irmãos do teu Cristo.' [Confissões IX.33]